Primeiro, a glória. O salto quádruplo nunca antes visto. A exibição que ninguém tinha alguma vez visto. O epíteto da Miss Perfeita a resumir um sem número de elogios. A certeza de que era o início de uma nova era.

Um salto quádruplo para a história: a “Miss Perfeita” de 15 anos que arriscou e conseguiu o impossível nos Jogos Olímpicos

Depois, o outro lado do sucesso. Um teste anti-doping positivo em dezembro. A cerimónia suspensa de entrega das medalhas de ouro a uma equipa que está proibida de representar o seu país. As dúvidas sobre a não exceção ao que parece ser uma “regra” na Rússia. A proteção de uma menor pelo Código mundial.

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A partir daí, um pouco de tudo. A admissão de uma substância proibida (trimetazidina), as dúvidas em torno do que fazer com a situação, a história de uma alegada contaminação através de um copo do avô que toma medicação para as anginas de peito, a decisão em deixar competir na prova individual para não haver o risco de “cortar” as pernas a alguém de 15 anos, a nota de que qualquer pódio teria a medalha “congelada”, as lágrimas depois da vitória no programa curto, o aparecimento de mais duas substâncias (L-carnitina e hypoxen) que sendo legais levantam dúvidas a elementos exteriores sobre um alegado modus operandi.

A “Miss Perfeita” russa do gelo tinha pés de barro: cerimónia das medalhas suspensa após teste anti-doping positivo de prodígio de 15 anos

Kamila Valieva tem apenas 15 anos. Um número de seguidores anormal no Instagram, uma vida normal de estudante dentro do possível, um gosto especial por karts e velocidades, um currículo já de peso entre o ouro no Mundial de juniores e no Europeu de seniores, mas apenas 15 anos. E, aos 15 anos, é a figura dos Jogos Olímpicos de Inverno. No bom e no menos bom, no melhor e no pior, de forma direta e até indireta.

“Não acredito nisso, não acredito nesta loucura. Não pode ser. Ela é uma jovem fantástica e uma atleta fantástica. A Kamila não tomou nada”, comentou após as notícias do teste positivo a lendária treinadora russa Tatiana Tarasova. “A posição da Federação da Rússia é a luta constante e consistente contra qualquer tipo de violação das regras desportivas e da ética olímpica”, assegurou o Ministério dos Desportos do país, evitando fazer mais comentários até haver uma confirmação da análise. Foi mesmo confirmada, sendo um medicamento indicado para as anginas de peito que pode também ajudar a melhorar a circulação do sangue até ao coração – e a partir daí a discussão girou à volta do aumento ou não do rendimento desportivo.

As autoridades internacionais tinham então de decidir o que fazer em relação ao teste positivo feito a 25 de dezembro entre vários recursos apresentados pelo Comité Olímpico da Rússia. Decisão? O Tribunal Arbitral do Desporto autorizou que Kamila Valieva se mantivesse nos Jogos de Pequim e que pudesse mesmo entrar na prova individual de patinagem artística (onde partia como favorita) mas o Comité Olímpico Internacional decidiu que não seria entregue qualquer medalha, fosse a da prova por equipa, fosse uma do possível pódio individual, enquanto toda a situação não ficasse devidamente esclarecida. “Trata-se de uma questão de equidade entre atletas”, defendeu o COI. “Todo o país apoia Kamila e todas as nossa patinadoras que estarão na prova individual. Foi a melhor notícia da jornada”, comentou o Comité russo. “Todo o país deseja que Kamila vença os Jogos Olímpicos de Inverno”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.

Os três árbitros do Tribunal Arbitral de Desporto que avaliaram o caso, o italiano Fabio Iudica (presidente), o norte-americano Jeffrey Benz e a eslovena Vesna Bergant Rakocevic, consideraram entre todos os muitos argumentos apresentados que a proibição de participar na prova poderia trazer “danos irreparáveis” para a carreira de Kamila Valieva mas a decisão não foi bem aceite por todos e surgiu nesse momento a primeira posição de força do Comité Olímpico dos EUA. “Os atletas têm o direito de saber que estão a competir de forma justa. Infelizmente, esse direito foi-lhes negado. Este parece ser um novo capítulo de desrespeito sistémico e generalizado pelo desporto”, defendeu em comunicado Sarah Hirshland, líder do Comité.

Foi também revelada a justificação apresentada pela defesa da jovem atleta russa perante o caso, que trouxe ainda mais questões a elementos externos. “O argumento apresentado é que houve uma contaminação com um produto que o seu avô toma para tratar problemas cardíacos”, revelou Denis Oswald, membro do Comité Olímpico Internacional. Ou seja, aquela análise positiva teria apenas surgido porque Kamila Valieva bebeu do mesmo copo do que o avô e que nunca tinha tomado qualquer substância. No entanto, o aparecimento de outras duas substâncias na amostra, ainda que legais ao abrigo do Código da Agência Anti-dopagem Mundial (L-carnitina e hypoxen), levantou mais suspeitas sobre um caso que está longe de chegar ao fim.

“Tudo isto é uma indicação de que algo mais sério está a acontecer. Tudo isso é usado para aumentar aquele que é o desempenho desportivo e compromete totalmente a credibilidade da defesa que está a ser feita em nome de Kamila Valieva”, referiu a esse propósito Travis Tygart, presidente da Agência Anti-doping dos EUA, avançando ainda mais nas acusações e criticando aquilo que é um problema sistémico do país de Leste.

“A Rússia sequestrou a competição e roubou aquele que deveria ser um momento de atletas que estão limpos pelos sextos Jogos Olímpicos consecutivos. A decisão tomada deve ser respeitada mas foi tomada de uma forma apressada. Só o tempo dirá se [Kamila Valieva] deve competir nestes Jogos e se todos os resultados serão desclassificados ou não. Se for concluído que não devia ter competido, isso vai revelar a farsa que foi a manipulação do sistema de doping patrocinado pelo Estado russo nos últimos oito anos. Se a Rússia tivesse seguido as regras, saberíamos de certeza o resultado do evento por equipas de patinagem artística e os atletas que deram tudo de si poderiam ter o seu momento de pódio como merecem”, salientou.

Nascida em Kazan, de onde se mudou depois para Moscovo com a mãe para perseguir os sonhos que agora começa a atingir, Kamila Valieva começou cedo a praticar ginástica, ballet e patinagem artística, não tendo demorado a fazer uma opção. “Deslizar no gelo e com velocidade é algo incrível. A ginástica foi um pouco dolorosa e no ballet serve para fazer algum exercício mas, como a música lenta, de alguma forma adormeci”, contou à Athlete em dezembro de 2019, quando começou a dar os primeiros sinais no gelo com a treinadora com toque de Midas na Rússia: Eteri Tutberidze, que liderou a também campeã Alina Zagitova. Daí para cá, ganhou o Mundial de juniores em 2020 e o Europeu de seniores este ano, entre outras competições, não tendo apenas o título mundial sénior por não ter podido participar na competição em 2021.

Kamila Valieva tem apenas 15 anos. Um número de seguidores anormal no Instagram, uma vida normal de estudante dentro do possível, um gosto especial por karts e velocidades, um currículo já de peso entre o ouro no Mundial de juniores e no Europeu de seniores, mas apenas 15 anos. E, por ter essa idade, é considerada uma “Pessoa Protegida” no âmbito do Código da Agência Mundial Anti-doping, tendo o enquadramento legal diferente do que teria se fosse apenas uns meses mais velha (a “fronteira” é feita nos 16 anos).

Aos 15 anos, Kamila Valieva é a figura dos Jogos Olímpicos de Inverno. No bom e no menos bom, no melhor e no pior, de forma direta e até indireta. Mas Kamila Valieva, que vai disputar esta quinta-feira de manhã em Portugal (10h) a medalha de ouro no concurso individual de patinagem artística, tem apenas 15 anos.