Entrou com um ar quase cândido, frágil, tímido. Quando se começou a ouvir a “In Memoriam” de Kirill Richter, uma música que homenageia a avó que morreu em 2019 sem ver aquilo que a neta seria capaz de fazer, mudou. Ligou o modo killer sem deixar de colocar emoção em cada movimento, transformou-se em alguém que parecia ter feito aquilo uma vida inteira, tomou conta de uma pista que é de todos mas que só a quer a ela e ganhou o programa curto de uma forma natural com 90.18, mais 15 pontos do que a japonesa Wakaba Higuchi. Veio o programa livre, entrou em ação o “Bolero” de Maurice Ravel, chegou mais história com o primeiro salto quádruplo da história no feminino e até uma queda que lhe valeu um ponto de dedução não impediu que terminasse com 178.92, mais 30 pontos do que a também nipónica Kaori Sakamoto.

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O Comité Olímpico da Rússia ganhou de forma concludente a prova por equipas na patinagem artística mas era de Kamila Valieva, a Miss Perfeita de 15 anos, que se falava. Mal comparado, era quase como a melhor versão de Simone Biles na ginástica, nos exercícios de solo ou no cavalo – os movimentos podiam até nem sempre ser perfeitos mas o grau de dificuldade a comparar com as restantes adversárias era tão grande que a vitória se tornava quase uma inevitabilidade. Depois, uma série de episódios que tiveram início na suspensão da entrega de medalhas por ter um teste anti-doping positivo mudou o cenário. A pista continuava a ser sua mas a única adversária era ela própria e a capacidade mental de aguentar a pressão de ter todos os holofotes (ainda mais) em cima de si. O primeiro teste tinha sido passado, chegava agora o decisivo.

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O Tribunal Arbitral do Desporto decidiu que Kamila Valieva poderia participar na final individual, o Comité Olímpico Internacional acatou o veredicto dizendo apenas que a entrega das medalhas na prova ficaria em suspenso para se resolver todo o caso (o facto de não ter 16 anos faz com que esteja sujeita a outro tipo de enquadramento legal à luz do Código da Agência Mundial Anti-doping), a Rússia até a nível estatal mostrou a satisfação por essa “luz verde”, os EUA lideraram a onda de críticas ao que é descrito como “um problema sistémico” do desporto russo depois de terem sido encontradas mais duas substâncias legais na amostra mas que conjugada com a proibida apontam para uma tentativa de benefício desportivo.

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No meio de todo o ruído, a jovem de 15 anos voltou a ser a melhor no programa curto. Com uma pontuação mais baixa (82.16 sem deduções), com uma diferença menor em relação à segunda classificada (80.20 da também russa Anna Shcherbakova), com uma margem mais curta no que toca à primeira atleta que não era do Comité Olímpico Russo (79.84 da japonesa Kaori Sakamoto, terceira melhor), mas a melhor. E esta quinta-feira chegava a hora da verdade, com a final do programa individual virado para Valieva.

Enquanto o terceiro de quatro grupos estava em ação, com a norte-americana Alysa Liu a ganhar essa espécie de “luta particular” antes de entrarem as favoritas às medalhas, a realização mostrava imagens do ginásio onde Kamila Valieva ia fazendo o aquecimento. Primeiro, a saltar à corda. Depois, a praticar triplos axel e quádruplos de ténis. A ouvir música, a fugir à tensão, a querer mostrar que nada a afetava quando sabia que tudo estava afeto a ela. E o nível da final mostrava que só mesmo a sua melhor versão seria suficiente.

A sul-coreana Young You começou com uma participação interessante, a japonesa desiludiu um pouco para o que se esperava com falhas que penalizaram e muito a nota no individual, a russa Alexandra Trusova, mais uma jovem com apenas 17 anos, “partiu tudo” com um total de cinco quádruplos completos no seu programa que lhe deram de forma muito confortável a liderança com 30 pontos de vantagem no programa livre num total de 251.73 (177.13 a juntar ao 74.60 do programa curto), a japonesa Kaori Sakamoto cumpriu mas ficou longe daquilo que tinha sido feito antes por Trusova. As medalhas seriam discutidas entre russas.

Anna Shcherbakova tinha a palavra. E teria mesmo de ser uma palavra afirmativa, capaz de bater aquele que era o seu recorde pessoal no programa livre. Alexandra Trusova manteve a liderança no programa livre como era esperado mas Shcherbakova, também de 17 anos, fez o suficiente para defender a vantagem que trazia do curto, saltando para o primeiro lugar parcial com 255.95 pontos (175.75 mais os 80.20 do curto). Era vez de Kamila Valieva, que começou com uma saída imperfeita do quádruplo e uma queda logo no movimento seguinte que deixava no ar um claro eclodir de toda a pressão acumulada à sua volta nos últimos dias a par da obrigatoriedade de conseguir um programa perto da perfeição para chegar à vitória. A jovem de 15 anos começou por impressionar por fazer aquilo que mais ninguém fazia mas acabou a falhar como nunca tinha falhado. E nem mesmo assim abrandou, sabendo que estaria a caminho de uma pesada derrota.

As piores notícias confirmara-se mesmo, com Kaori Sakamoto a conseguir uma medalha de bronze que não estava à espera, Anna Shcherbakova a juntar o título mundial ao olímpico, Alexandra Trusova a ficar com a prata e Kamila Valieva a terminar em quarto com 224.09, sendo “apenas” a quinta melhor no individual (141.93). E o que se via depois da competição? Imagens da atleta de 15 anos a chorar de forma compulsiva, Tursova a não esconder também as lágrimas perante tudo o que estava a acontecer e Shcherbakova a não ter propriamente uma festa pelo triunfo, sentada sozinha no sofá a olhar para o vazio.