O preconceito

Costuma dizer-se que à segunda-feira não há peixe. Não é verdade. Ao domingo é que não há pescadores. Parece a mesma coisa, mas não é, porque, em rigor, há sempre peixe à segunda, só que foi fisgado no sábado. Vem isto a propósito do Sexy Sea, novo restaurante junto à Avenida da Liberdade, onde a aposta é o peixe do dia e o glamour da noite, e que eu, em total desrespeito pelo conceito, decido ir experimentar numa segunda-feira ao almoço.

E agora pergunta um de vocês os três: mas ó Arnaldo, tu afinal és o Experimentador Implacável ou o Improvável? Bom, antes de mais, fico feliz por já termos à-vontade suficiente para me tratarem por tu. Depois, respondo que essa é uma boa pergunta, feita até com graça, mas de resposta simples e saída airosa: o que me interessa é testar a cozinha, e se a coisa correr bem nestas condições, sem matéria fresca nem frescura de conceito, estaremos no caminho certo. Por fim, admito, um gajo não vai para novo e já acontece mais vezes sentir-me sexy ao meio-dia do que às nove da noite.

O Sexy Sea promete “uma visão sedutora sobre o peixe e marisco portugueses”, coisa que me parece promissora, mas apresenta-se também como “the sexiest restaurant in town”, coisa que me soa assustadora. Eu, que tendo a ter preconceitos com os conceitos, começo logo a imaginar trutas de lingerie. Mas faço um esforço de boa vontade e ponho-me a cogitar sobre esta relação entre frutos do mar e sensualidade. As ostras estimulam a líbido porque têm muito zinco, a sardinha melhora a circulação porque é rica em ómega 3, o besugo solta a imaginação porque tem a forma de um besugo. E eis tudo quanto julgo saber sobre o assunto.

O cenário

A casa estreou em janeiro, em regime de soft opening — nome técnico para o período de carência em que o restaurante já pode cobrar por inteiro, mas o cliente ainda não — e ainda se topam ligeiras hesitações no serviço. Ao leme está Abel Moura e Cunha, chef que passou pelo Rabo d’ Pêxe, onde o foco era o mar português e se podia escolher cada exemplar diretamente da montra, pedir para fazerem uma sopa da cabeça e transformar o corpo em sashimi ou mandar grelhar. Olhando a carta, percebo que tudo isso se repete aqui, desde os peixes nobres trabalhados entre o fogo e o cru, passando pelo toque de cozinha asiática, e acabando na oferta alternativa de carnes. Mas tudo isso com um twist de “ambiente diferenciador”. É difícil resistir: o Rabo tornou-se Sexy.

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À entrada, uma montra iluminada expõe as pérolas do dia. Avisto dois pregados de pequeno porte, um goraz, um rascasso, vários salmonetes, camarões tigre. Tudo com ar brilhante e olho vivo, apesar de ser segunda, preços a começar nos 45€/kg e a trepar rio acima. Há um balcão com nove lugares com vista para os preparos do sushi, sashimi e niguiri, dos gunkans e dos makis, mais uns 40 lugares entre a sala principal e uma segunda, mais pequena, elevada no mezzanine.

No teto pende um bonito peixe gigante de lata, e toda a decoração me diz que isto foi pensado para ver e ser visto à noite: a garrafeira de bar, o toque de veludo das cadeiras, a meia-luz de um mergulho a dois metros de profundidade, e a playlist lânguida, só com canções filtradas em bossa nova e alisadas com voz de cama. A primeira chama-me a atenção — não conheço, vou à pesca no Shazam. Muito a propósito, descubro, chama-se “Sea of Love” e fala de amores sensuais. “Do you remember when we met / That’s the day I knew you were my pet / I wanna tell you how much I love you”. É uma bonita declaração, sobretudo se estivermos a falar para um peixinho dourado ou a tentar imitar o Bruno de Carvalho.

A mesa

Comecemos pelo couvert, como é suposto. Pão de centeio da Gleba, manteiga de alho fofinha com raspa de lima, boas azeitonas e dois pequenos croquetes que dizem ser de peixe do dia, parecem envolvidos com tinta de choco e humedecidos por umas gotas de molho género caldeirada. Tudo bonzinho (4€). As boas indicações continuam com uns niguiris de sardinha (7€), sabor exuberante, o bicho levemente curado, e outros de carapau (7€), bem puxados com um alho frito em azeite, todos eles bem montados num arroz gomoso e bastante gulosos. Melhores ainda os gunkans de lírio, o peixe com uma frescura de terça-feira a envolver umas amêijoas à Bulhão Pato num canudo delicado (9€).

Daqui partimos para um atum tratado como uma vaca: o animal de boa linhagem, partido em cubos bem selados e encruados ao centro, molho de mostarda, pickles, vinho branco, coentros e alho. Juntem-se umas boas chips de batata doce e temos um excelente pica pau (12€), a lembrar que este Sexy também contempla as tentações da carne (fiquei de olho num novilho à Bulhão Pato, e suspirei por uma peça Wagyu de 250 gr, que apenas vai à grelha, traz batatas fritas e uma etiqueta de 80€). De resto, se acham que Sexy Sea é nome que dá largas à imaginação, saibam que em Albufeira há outra casa, dos mesmos donos, chamada Sexy Meat. Isso sim, meus amigos, dá piada fácil.

O arroz caldoso com peixe do dia (neste caso robalo) © Instagram Sexy Sea

Para prato principal, escolho partilhar um arroz caldoso de bivalves com peixe do dia (17€). Fico a perceber que o dia é de pregado, que me chega impecavelmente tratado em filetes com a pele tostada, sobre um arroz de tomate e pimento enriquecido de amêijoas e perfumado de ervas. O conjunto vem malandrinho, que é outra forma de ser sexy, e só lamento o bago uns minutos abaixo do ponto, que ainda me põe os molares a fazer de mó.

Nos vinhos, procuro um branco, e conto umas trinta entradas, numa carta bem composta de rótulos nacionais. Muita escolha na casa dos vintes, mas eu arrumo o assunto nos 19€, tanto quanto pedem por um Diálogo Niepoort, que funciona como vinho da casa (4€ o copo), equilibra toque floral com alguma acidez, e se aguenta muito bem com toda esta peixeirada. E é aqui que se torna evidente que o serviço ainda soluça, quando a jovem empregada perde quatro minutos a escarafunchar a rolha. Sorrio, tenho tempo. A verdade é que o atendimento é de uma simpatia inatacável, diria mesmo fofinho, e suponho que uma segunda-feira de casa meio vazia seja a altura ideal para estes tirocínios.

A fatura

Vamos então a números. Lembro que estamos na Avenida da Liberdade a comer peixe à fartazana, que isto anda aí uma carestia, a vida está pela hora da morte. Peço a conta e ponho os óculos novos (que me custaram os olhos da cara) para ver bem o que lá vem escrito. Quase 40€ por cabeça, vinho bebido e incluído. É luxo para quem pode, mas não é descabido para a qualidade, embora já exigisse um serviço mais oleado. Percebo depois, pelo Instagram da casa, que bastava ter usado um código, que está ao acesso de todos, para ter um desconto imediato de 40% no almoço (“SEXYLUNCH”, fácil de fixar, lembra escapadinha de Motel). Não estou certo de como se usa, mas calculo que seja tipo palavra de segurança para segredar ao ouvido da empregada. A mim ninguém avisou e eu fiquei escamado com isso.

© Instagram Sexy Sea

E agora perguntam vocês: mas tu dás quatro estrelas a tudo, ó Valente? Lá está: antes de mais, fico feliz por saber que me têm lido. E depois respondo-vos que sim, este Sexy Sea também vale isso, pelo produto e pela técnica, sobretudo para mim que entrei aqui armado em carapau de corrida, a torcer o nariz ao erotismo piscícola. Não fosse já ter abusado dos lugares-comuns e diria que pela boca morre o peixe.

Ficou a faltar-me ver como se safam na grelha e a cru, sem truques nem caldeiradas. Mas isso fica para outro dia da semana.

Como diz o outro, hei-de voltar.

Sexy Sea. Rua Rodrigues Sampaio, 29. Todos os dias das 12h00 às 15h00, das 19h00 às 00h00. Tel.:913 70 06 96

O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.