A casa
O fondue é uma relíquia dos anos 80. É como as K7, o Citroën do Cavaco ou a Samantha Fox — depois de muita rodagem, perdeu o interesse. Ora eu, que já tenho tempo suficiente para dizer que ainda sou do tempo e lembro-me bem de quando tudo isso estava na berra, decido alimentar a nostalgia. E para isso, obviamente, dirijo-me ao Barreiro.
O restaurante O Fondue é uma instituição quarentona. Abriu no início da década de 80, quando a febre começou e toda a gente se esforçava por pronunciar fondue da forma mais afetada possível, contraindo a boca e o esfíncter em simultâneo, que é aliás a única forma de falar francês com correção. Lembro-me de lá ir nos primeiros tempos, ainda gaiato, e testemunhei o sucesso inaugural da coisa. A casa migrou depois do centro da cidade para a zona industrial de Palhais, a meio caminho de Coina, e chegou a ter uma breve aventura no Saldanha, quando nos idos de 2017 fixou uma segunda morada na rua Tomás Ribeiro. Não vingou. Talvez porque em Lisboa o gosto pelo fondue tenha esmorecido — mas na Margem Sul, como diria o outro, jámé.
Antes do meio-dia e meia ligo a marcar, mas dizem-me que basta aparecer, tipo regime de casa aberta. Chego pouco depois da uma e a sala está a meio, o que já só deixa uns 125 lugares livres. O lugar parece um pavilhão de vacinação e daqui por meia hora há-de encher. Tudo tem proporções industriais, das tubagens de extração no teto, à imensa cozinha que se avista ao fundo, e assim de soslaio conto 12 empregados nas mesas e outros tantos para lá do balcão, todos fardados de preto. Ainda assim, mantém-se um toque acolhedor, um ruído controlado e um serviço tranquilo e sem tempos de espera. O vice-almirante havia de gostar.
A carta
A especialidade da casa é o fondue grelhado e a atração são as carnes exóticas. Mas a carta parece a despensa de Noé. Há kobe, vitela, vazia maturada, picanha e maminha, frango, pato, peru e porco preto, mais lagosta, gambas e tamboril. Depois entram o camelo, o cavalo, o bisonte, a avestruz, o canguru, o lama, o crocodilo e a zebra, e a primeira imagem que me vem à cabeça é que chacinaram o elenco do Madagáscar e esconderam as carcaças numa arca em Palhais.
A dificuldade está pois na escolha. É que ainda há hipóteses mistas e todas as carnes se podem pedir com gambas, lagosta ou tamboril, com dois deles ou com os três. Calcular todas as combinações possíveis exige uma fórmula com factoriais ou, no meu caso, uma boa unha: conto 153 propostas de fondue, que rimam com três páginas de menu. Todos para dividir.
Ocorre-me a velha história daquela tasca onde se garantia que havia sandes de tudo. Quando um habilidoso pediu uma sandes de baleia, o empregado argumentou que não ia encetar um cetáceo inteiro só por uma sandes. Mas aqui não. Garantem-me que há sempre tudo, salvo imprevistos, como em toda a parte. Decido-me por um misto de dois animais exóticos e de carne kobe wagyu. E aqui podia começar outra anedota: um bisonte, um crocodilo e uma vaca japonesa entram num restaurante; atrás entra um Valente, que os come a todos às fatias.
Os vinhos são outra aposta da casa e outra razão de indecisão. Conto uns 80 rótulos, a começar nos 9€ e a trepar por aí acima, mas sempre a valores honestos, que em vários casos nem dobram o preço de venda ao público. Encontro, aliás, magníficas pechinchas, com tintos de certa idade e pronúncia alentejana, a valores que não excedem o preço médio nas garrafeiras. Não direi nomes, para evitar publicidades, mas já que estamos numa de Fungagá imaginem um moucho muito grande, assim com uns nove anos; ou um bando de aves pernilongas enjauladas numa reserva há sete. Estão a ver? Ótimo. Pudesse eu dizer nomes e simplesmente prescrevia o Mouchão 2013 ou o Herdade dos Grous Reserva 2015.
Quanto a mim, que não estou abonado, fico-me por um Quinta de Alcube Castelão (15€), que é casta que se dá bem com os ares vizinhos de Palmela e oferece um vinho encorpado, cheio de fruta vermelha, a combinar lindamente com esta gordice de carnes, batatas fritas e maioneses.
A experiência
Mal me sento, aterra na mesa um rodízio de entradas, saladinhas, gambas, presuntos, patés e quejandos, tudo com bom aspeto, nada muito excitante. Retenho apenas uns croquetes em bolinha e pergunto ao empregado de que são feitos. Pede desculpa, não sabe dizer. Em teoria, penso, pode estar ali meio Livro da Selva trucidado nos restos de ontem. Mas encolho os ombros à primeira dentada: são densos, bem fritos e muito saborosos.
Nem dez minutos e chega tudo. Primeiro, uma chapa quente em forma de ovni voa em segurança pelo corredor entre mesas, onde qualquer dos animais da carta passaria sem dificuldade. E logo atrás a comida. As carnes vêm arrumadinhas e etiquetadas num só prato bem servido, umas oito peças finas por cabeça, flor de sal e ervas aromáticas. Há um tabuleiro com uns seis molhos, entre um ketchup banal e uma boa maionese cremosa. Há doses individuais de belíssima batata frita caseira, estaladiça por fora, macia por dentro e corte irregular, que me deixa a perguntar quem será o desgraçado que todos os dias descasca tubérculos para 250 pessoas. E há a fruta, claro. Alperce, uva, abacaxi, melão, laranja, kiwi. Dito em voz alta, parece um poema da Rosa Lobato Faria numa tigelinha.
O produto é todo bom, e isso, no caso, é quase tudo. A qualidade das carnes parece-me irrepreensível, mas o exotismo é como a Samantha Fox, a graça murcha com a novidade. O bisonte é um bovino adocicado, apenas interessante, e o crocodilo é indeciso, nem carne nem peixe, ali entre o frango e o tamboril, um nadinha borrachoso, como se adivinha só de olhar para o animal. Salvo melhor opinião, que guardo para depois de abocanhar uma zebra ou um camelo, cheira-me que o melhor negócio aqui é mesmo a carne kobe, preparada com minúcia japonesa. Chega num vermelho fresquíssimo, fatiada em cortes precisos e suculentos, a pedir apenas uns segundos de calor. E é esta vaca delicada que me satisfaz por inteiro.
Saio feliz, a cheirar a jantarada dos anos 80 e com crocodilo preso nos dentes. Mas enfim, antes ele que eu.
Hei-de voltar.
Rua José Félix Ferreira, Palhais, Barreiro. 21 215 6081. Qui-Ter 12.00-15.00, 18.30-23.00. Preço médio, 50€ duas pessoas com vinho.
O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.