“Tenho vergonha por não ter ficado e lutado até ao fim. Mas se formos contra a guerra, eles prendem-nos e existe a lei da traição ao Estado”. Esta russa de 29 anos que fala à Reuters já está em Israel e junta-se a uma lista crescente de população que neste momento procura sair rapidamente do país. Há dois receios: que seja decretada a lei marcial a qualquer momento; a quantidade crescente de detidos em protestos anti-guerra no país. Se procurarem Portugal, terão de recorrer a mecanismos gerais, já que o regime de proteção temporária se aplica apenas a quem vem da Ucrânia.
Os relatos da fuga russa estão em vários órgãos de comunicação social internacionais nesta sexta-feira. A Reuters, por exemplo, cita várias fontes que pediram para não serem identificadas, como o homem de 38 anos que afirma não querer “lutar nesta guerra. Ouvimos vários rumores e não confio no Kremlin quando diz que não são verdadeiros”. Aliás, a filha de um alto funcionário russo, contou ao The Guardian que a sua família foi “aconselhada a sair o mais rápido possível” da Rússia.
“Juntei a minha família depois que um amigo do ‘topo’ me ter ligado sobre isso da lei marcial. Reservámos o primeiro avião disponível na terça-feira e voámos para um país aleatório em que nunca estive antes”. Também Anton, gestor numa grande empresa de petróleo e gás do país, conta ao The Guardian que não tem planos para combater nesta guerra e que não foi sua decisão começá-la.
Nos últimos dias começou a circular a suposta intenção das autoridades russas de decretarem a lei marcial (o que já aconteceu na Ucrânia, impedindo que homens em idade de combate pudessem sair do país). Na sequência disso, Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, veio garantir que “isso são boatos. Não passam de boatos publicados nas redes sociais. Devemos ter muito cuidado com as informações para não sermos vítimas de boatos e falsificações”.
Mas este dedo que aponta é também apontado pelo resto do mundo por suposta tentativa de manipulação de informação, sobretudo depois de medidas de “restrição parcial” como por exemplo as que as autoridades russas impuseram no acesso ao Facebook, da Meta que também detém plataformas como o Instagram e o WhatsApp.
A suspeita de uma campanha de desinformação levada a cabo pelo Kremlin preocupa os cidadãos russos que procuram sair do país, mas há também aquilo que vêm nas ruas de Moscovo. Cerca de 7.669 pessoas foram detidas na Rússia desde que a invasão começou por participarem em protestos anti-guerra, de acordo com os dados da organização russa independente OVD-Info.
Em 2012, Vladimir Putin conseguiu ampliar a Lei da Traição ao Estado, incluindo no conceito de alta traição não só quem transmitir informações secretas a governos estrangeiros, mas também quem fornecer consultas ou ajuda financeira a organizações internacionais — o que foi visto na altura como uma ameaça à oposição ao Kremlin, pelas organizações de defesa dos direitos humanos. E foi esta mesma alteração que, quatro dias depois da invasão à Ucrânia ter começado, o procurador-geral russo veio sublinhar num comunicado, citado pela Euronews: “Quem fornecer assistência financeira ou de outra natureza será avaliado legalmente”. Também sublinhava a pena máxima aplicada a estes casos: 20 anos de prisão.
Não é, no entanto, a única ameaça que pende sobre quem vive na Rússia e sente que este não é um combate seu. As sanções económicas que o Ocidente (sobretudo União Europeia e Estados Unidos da América) tem imposto ao país têm aumentado nos últimos dias e isso provoca uma pressão adicional, tendo já provocado a suspensão de atividade na Rússia de várias empresas internacionais como o Ikea ou a Apple. Rapidamente a busca pela palavra “emigração” pelos russos no Google atingiu um pico:
A Google search spike for the word “emigration” in Russia following the invasion pic.twitter.com/pzY6VnOrE4
— Pjotr Sauer (@PjotrSauer) March 2, 2022
A Google search spike for the word “emigration” in Russia following the invasion pic.twitter.com/pzY6VnOrE4
— Pjotr Sauer (@PjotrSauer) March 2, 2022
Ao britânico The News Statesman, Yekaterina, de 30 anos e residente em Moscovo, confessa sentir-se “envergonhada” e com medo “do isolamento internacional que aí vem”. “Poderia viver num país governado por um gangster, porque podemos trabalhar dentro das suas regras. Mas não posso viver num país governado por um maníaco, um assassino”, atira também Oleg, de 28 anos, ao mesmo jornal.
Problemas para quem sai: vistos, controlo nas fronteiras e preços
Quem sai enfrenta vários problemas, desde logo nos aeroportos russos, onde Andrei, que trabalha na área do cinema em Moscovo, disse ao The Guardian que teve o seu telemóvel nas mãos das autoridades num dos aeroportos internacionais da capital russa: “Passaram uma boa hora a passar tudo em revista. Felizmente tinha apagado todas as discussões em chats, no Telegram e no Signal, sobre a minha oposição a esta guerra”. “Foi um dos momentos mais assustadores da minha vida”.
A aplicação Flight Radar 24 permite ver uma fila de voos de diferentes companhias, com origem em São Petersburgo e em Moscovo, no sentido de saída do país. Se seguirmos esta fila é possível continuar a monitorizar inúmeros voos com a mesma origem a dirigirem-se para Ocidente.
Os preços dos bilhetes também dispararam e as companhias aéreas russas encontram uma barreira, com o fecho do espaço aéreo por parte da União Europeia e dos Estados Unidos, por exemplo, tendo como reflexo a retaliação do lado de lá. Esta segunda-feira, a Rússia anunciou restrições de voos de companhias aéreas de 36 países, incluindo Portugal. Restrições que acabam por dificultar planos — pela falta de voos e consequente subida dos preços — para quem quer fugir do país que ainda tem de conseguir visto para entrar na maior parte dos países europeus e outros (já para não falar na vacinação contra a Covid-19, com a vacina russa, a Sputnik V, sem aprovação da União Europeia).
Russos correm às caixas multibanco depois do anúncio das sanções. Filas de várias horas
Em Portugal, por exemplo, a Rússia não faz parte da lista de países que estão isentos de visto para entrar no país. O Observador procurou saber junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros informações sobre eventuais pedidos de asilo ou procura do país por parte de quem queira sair da Rússia, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo. De qualquer forma, apesar de também estarem envolvidos no conflito, quem quiser sair da Rússia terá de recorrer ao mecanismos gerais, já que não se enquadra no regime de proteção aprovado no Conselho de Ministros da última terça-feira que só se aplica a quem está a fugir da Ucrânia.
Além de todas as barreiras burocráticas que estas pessoas possam enfrentar, esta semana Putin assinou ainda um decreto a proibir que os russos saiam do país com mais de 10 mil dólares (cerca de 9 mil euros) em dinheiro. E foi também imposta uma comissão de 30%, pelo banco central russo, nas transações de câmbio. Medidas que visam deter a saída de capital do país, mas que têm também como efeito a dissuasão de quem possa pretender emigrar. O movimento adensa-se.