Este artigo foi originalmente publicada no
6.º número da revista DDD – Dê de Delta.
Texto: Mariana Abreu Garcia
Fotografia: Mariana Alvarez Cortes
Há apenas cinco anos ninguém podia adivinhar, por mais imaginação que tivesse, que este café havia de abrir em Lisboa. Nem mesmo Filipa Pinto Coelho, a responsável pelo projeto. Em 2016, a marketeer dirigia a própria empresa de consultoria de comunicação, depois de quase duas décadas a trabalhar em marketing para grandes empresas, em áreas tão distintas como a banca ou o setor de luxo da moda.
Foi depois de “toda uma vida” nestas andanças que, aos 40 anos, Filipa começou um novo capítulo, tanto a nível pessoal como profissional. Grávida do seu terceiro filho, soube às treze semanas de gestação que ele tinha trissomia 21. “Tive um choque”, recorda. “Tentei fazer um caminho e perceber o que era esta realidade.” E rapidamente percebeu que, da mesma maneira que tinha sido um embate para si, muitas pessoas a quem dava a notícia também a recebiam com estranheza.
“Achei que tinha de se fazer alguma coisa para mudar a perceção que existe da diferença no outro.” Assim fez. Filipa conheceu as pessoas certas no momento certo e no ano em que nasceu o filho Manel nasceu também a Vila Com Vida, uma associação sem fins lucrativos criada por uma médica neurologista e um grupo de pais de crianças e jovens com perturbações ligeiras do desenvolvimento intelectual – do qual Filipa fazia parte. Trabalhando diretamente com pessoas com diferentes dificuldades cognitivas, a organização tinha como missão integrá-las na sociedade, através de projetos inclusivos de empregabilidade, que lhes permitissem viver de forma autónoma e feliz, em contacto com as pessoas que as rodeiam.
As estatísticas à época mostravam que, só no distrito de Lisboa, havia mais de três mil jovens a sair da escola para o mercado de trabalho que, apesar de apresentarem dificuldades de aprendizagem, tinham potencial de autonomia. “Estes jovens saírem para o mercado com a mesma solução que pessoas com dificuldades mais profundas saem… Achei isto de uma negligência brutal.” Essa sensação motivou os meses de pesquisa que se seguiram. O trabalho da associação entusiasmou tanto Filipa que a empresária acabou por abandonar a sua consultora para assumir a direção do novo projeto.
Muitas foram as iniciativas que marcaram os primeiros anos da associação, mas foi a ambiciosa ideia de abrir um café que foi ganhando maior força. “Apesar de já haver muitas instituições a trabalhar com estas pessoas, não havia oportunidades naturais, positivas e regulares de contactarmos enquanto sociedade com a diferença.” Em 2018, nasceu o projeto-piloto, na cafetaria da Fundação Portuguesa das Comunicações, em Lisboa. Em funcionamento durante 18 meses, o Café Com Vida empregou quatro pessoas com dificuldades de aprendizagem e recebeu mais de seis mil clientes. Com o apoio inicial da Delta, o projeto tornou-se autónomo ao fim de seis meses, tornando claro que a ideia tinha pernas para andar. Mas não era só em Portugal que se chegava a esta conclusão.
Em 2017 e em 2018, abriram em França os dois primeiros cafés Joyeux, um em Rennes e outro em Paris. Foram tantas as notícias sobre as inaugurações – em particular a do segundo espaço, na capital francesa –, que chegaram até Filipa, que as recebeu como confirmação de que o caminho que estava a percorrer na Vila Com Vida fazia todo o sentido. O que não esperava era que, logo de seguida, tivesse acontecido uma “coincidência da vida”, como lhe chama: recebeu um telefonema de uma amiga que lhe dizia que tinha conhecido o designer responsável por toda a imagem do café Joyeux em França, que ele estava a viver em Lisboa, e que talvez conseguisse marcar-lhe uma reunião com ele. “Estás a brincar? Claro que sim!”
Nem um mês depois, estava em França a conhecer Yann Bucaille Lanrezac, o fundador dos café Joyeux. “Ele mostrou-me a pilha de emails que tinha, de pessoas a pedirem para abrir estes cafés por França fora. Mas eu disse-lhe que era tão raro estarmos ali os dois, sentados frente a frente, que não podíamos deixar passar a oportunidade. Aquilo tinha uma razão de ser.” Ali começou a parceria, que havia de demorar a concretizar-se, mas que, em novembro de 2021, finalmente se materializaria.
A alegria é o prato do dia
O café Joyeux abriu em Lisboa, com pompa e circunstância, num evento que contou com a presença do Presidente da República e do presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Tratando-se do número 26 da Calçada da Estrela, bem de frente para a Assembleia da República, poder-se-á dizer que os políticos poderão ser visita frequente da casa. “A inclusão e a diversidade são prioridades da cidade”, afirmou Carlos Moedas ao entrar no espaço amplo e luminoso, pintado de amarelo e branco.
No café, a alegria é o prato do dia, todos os dias. Com um menu curto mas saboroso, composto sempre por sopa do dia, quiches, prato quente e saladas, sem esquecer depois as baguetes e os pastéis de nata, aqui cozidos diariamente, ou as maravilhosas cookies com pepitas de chocolate, o bestseller da casa durante as primeiras semanas de portas abertas ao público. A cozinha, que fica no andar de baixo, tem uma comprida janela em vidro que permite espreitar e ver a magia acontecer. A frase que ali ao lado se lê, “aqui cozinha-se com o coração”, ganha um novo sentido. No andar de cima, esse e outros lemas da casa podem levar-se estampados em camisolas, postais, aventais, tote bags, cadernos, entre tantas outras opções. “A nossa comunicação é positiva, focada nos talentos de cada um, os seus superpoderes. Queremos mudar a linguagem e dar testemunho: mostrar que é possível empregar estas pessoas e ter sucesso”, afirma Filipa.
Os nove colaboradores fazem turnos que vão de quatro a seis horas, recebendo proporcionalmente ao tempo que trabalham o valor correspondente ao ordenado mínimo nacional. Durante os dois primeiros anos, estão empregados mas em formação: passam por quatro áreas de trabalho (serviço de mesa, barista, caixa e cozinha) e por três níveis de autonomia. Em todos os casos, contam com a orientação de três profissionais da restauração: um responsável pela cozinha, outro pela loja e o terceiro o gerente do espaço.
Todos os processos – das receitas ao equipamento utilizado, passando pelo processo de atendimento ao cliente – são pensados para promover a autonomia de pessoas com dificuldades intelectuais e de desenvolvimento. “É um processo de aprendizagem para todos, mas é perfeitamente compatível com um negócio de sucesso.” Terminado o período de formação, os jovens têm ali trabalho garantido ou, com o certificado de formação, podem procurar outros empregos, se assim entenderem. “O café Joyeux permite a estas pessoas que cresçam em autonomia e amadurecimento, preparando-as para serem profissionais, aqui ou noutro lugar.”
Café alegre é café Delta
Foi em 2018, numa conversa sobre inovação social organizada pelo jornal Observador, que Rita Nabeiro conheceu Filipa Pinto Coelho. “A Rita mostrou curiosidade e quis conhecer melhor a Vila Com Vida. E desde o princípio do Café Com Vida que a Delta foi o nosso grande parceiro.” Ao fim de três anos, com a abertura do Café Joyeux, a parceria deu um salto. Se o café que se bebia nos Joyeux em França era produzido lá, porque não beber café português no espaço lisboeta? Afinal, a cultura e o gosto do café mudam de país para país, e o cliente português tem um palato muito diferente do francês. Daí à criação de um novo blend de café Joyeux em parceria com a Delta foi um passo.
“Propus à Delta a criação de um café e houve logo um sim.” Foi acelerada a criação de um blend específico que substituísse o número dois dos seis tipos de café francês Joyeux. O “extraordinaire” é agora o português “extraordinário”, produzido em Campo Maior. O aroma foi desenvolvido em especial para este projeto, tem um sabor único e contou com o parecer do próprio Rui Nabeiro, que acompanhou o processo. “Ainda nem acredito que há umas semanas estava em Campo Maior a conhecer o senhor comendador”, conta Filipa emocionada, depois de visitar a torrefação, os armazéns e de aprender muito mais do que alguma vez imaginou sobre café. O que mais ficou da visita foram, no entanto, as palavras. “O senhor Nabeiro olhou-me nos olhos, deu-me aquele sorriso e disse-me que éramos iguais. Fiquei verdadeiramente emocionada. Encontrei nele a validação deste nosso modelo de negócio, que é um modelo de amor, assim como é o dele, que deu origem a um império. Nunca mais me vou esquecer daquele momento.”
Para o futuro, os planos são mais que muitos. Além da substituição das restantes cinco variedades de café francês por novos blends portugueses, pretende-se chegar a mais pessoas com estes sabores. O “extraordinário” café, que neste momento se prova no Joyeux e se pode comprar no espaço e levar para casa, passará também a estar em grandes empresas de norte a sul do país. Onde se bebe Delta, também se poderá beber este novo blend e apoiar a missão Joyeux. Filipa sonha ainda com a possibilidade de fazer chegar este e os futuros novos cafés, produzidos pela Delta para o Joyeux, aos espaços originais, em França. “E porque não?”