O Amore Vero de Igor Sechin preparava-se para deixar Marselha. O Lena de Gennady Timchenko não foi além de Sanremo. A curta distância, em Imperia, o Lady M de Alexei Mordashov via-se forçado a silenciar os motores. Já o destino do Dilbar, um dos maiores do mundo, que os EUA garantem pertencer a Alisher Usmanov, não terá tido ordem para abandonar Hamburgo, garante a Bloomberg.
Com o cerco a apertar desde a semana passada junto das maiores fortunas russas, os iates dos homens do presidente russo vão navegando por águas incertas, escapando sempre que possível para paragens e cenários mais idílicos como os Maldivas.Mas um dos mistérios mais recentes, conta esta terça-feira o norte-americano The New York Times, chega de Itália e está a ser investigado pelas autoridades locais, que na passada sexta-feira fizeram uma visita ao famoso, e enigmático, Scheherazade.
“Estão a procurar a sério, a vasculhar todos os aspetos. Isto não é uma visita da polícia local, isto são homens com fatos escuros”, descreveu ao jornal, por telefone, a partir da embarcação, o capitão Guy Bennett-Pearce, de nacionalidade britânica. Fonte próxima do caso, confirmou, sob anonimato, que as autoridades tributárias de Itália abriram um inquérito ao caso. Esta terça-feira, confirmou Bennett-Pearce, iria entregar uma série de documentos que os investigadores prometeram tratar “com discrição”.
Foi em setembro passado que o mega-iate de 140 metros chegou a Marina di Carrara, e por lá permanece ancorado. Se o estilo de vida dos oligarcas é digno de um cenário saído d’As Mil e Uma Noites, também é verdade que é quase sempre matéria sigilosa, incluindo a identidade de quem possui cada um destes colossos (e os já habituais contratos de confidencialidade assinados pelos empregados). Ainda assim, quando pela primeira vez chegou ao porto os locais estranharam que a tripulação tivesse erguido uma enorme barreira metálica que permite camuflar o barco. Um secretismo extra que rapidamente contribuiu para o disseminar de teorias.
“Todos dizem que é o iate do Putin, mas ninguém sabe a quem pertence. Há meses que corre este rumor”, partilhou com o Times Ernesto Rossi, enquanto se passeava pela zona. Um rumor confirmado pelo capitão do Scheherazade, se bem que “iate de Putin”, acrescenta o jornal, é uma expressão que se popularizou no país para descrever uma embarcação hiper luxuosa e misteriosa. De resto, é conhecido o gosto do presidente russo por este tipo de barcos. Em maio de 2014, por exemplo, o seu “Nataly”, um dos quatro que Putin teria então à sua disposição, submetia-se a manutenção no estaleiro de Azimut-Benetti, contava a imprensa local. Quanto ao Graceful, outra das embarcações que pertencerão ao líder russo, em 2017 passava quatro dias em águas italianas, mais concretamente em Marina d’Arechi, no golfo de Salerno.
Sobre a eventual ligação do muito mais imponente Sheherazade a Putin, Bennett-Pearce é perentório: “Nunca o vi. Nunca estive com ele”, e garantiu apenas que o proprietário do Scheherazade não consta da lista de sanções. Sem excluir a hipótese de que o nome em causa tivesse nacionalidade russa, o capitão recusou-se no entanto a confirmar a sua identidade, citando um “rigoroso acordo de confidencialidade”, e confiando que em breve conseguirão “eliminar todos os rumores negativos e especulações” que rodeiam a embarcação. Alguns meios admitem também a hipótese de pertencer não a um oligarca próximo do presidente Putin, mas a um bilionário do Médio Oriente.
Construído na Alemanha, corria junho de 2020 quando o Scheherazade abandonou por fim o porto de Bremen, até então com o nome de código “Lightining” (Relâmpago). Mas até soltar amarras passaram alguns anos de discretas andanças em Lürssen, com a curiosidade a remontar a dezembro de 2017. “Ao longo de dois dias no início desta semana, outro super-iate secreto entrou num dos maiores estaleiros de construção de Lürssen, […] observadores de iates acreditam tratar-se do Projeto Relâmpago, que teria entrado no mesmo estaleiro que o Projeto Shu desocupou”, lia-se no site Megayacht News.
Em 2019, os entusiastas dos barcos deliciavam-se com novos detalhes sobre a construção, e já em janeiro de 2020 surgiam vídeos sobre o seu impacto visual em ambiente noturno. Mas continuavam desconhecidos pormenores como a autoria do projeto, à medida que se ultimava o capítulo das amenities em águas germânicas — mais tarde, o design exterior seria associado à Espen Øino e o interior a François Zuretti. Não estranha o impacto que esta estrutura causou quando por fim foram captadas imagens em plena ação. E se um dia estava na Alemanha, no outro era já avistado em Gilbraltar.
Com os seus impressionantes 140 metros de comprimento, o iate exibe outras características rapidamente visíveis, como os dois heliportos, um deles reservado aos proprietários, como é comum em estruturas semelhantes. E se outro traço marcante é a abundância de vidro e extensos decks, não apresenta muitas áreas totalmente expostas ao exterior. Por sua vez, uma grande plataforma dobrável no convés mais baixo permite fácil acesso a um clube de praia. Outra plataforma dobrável, mais adiante, neste mesmo nível, favorece os embarque e desembarque dos passageiros. Atinge uma velocidade de 19 nós, estima-se que poderá ter custado até 700 milhões de dólares e a manutenção anual poderá chegar a 75 milhões de dólares.
Ao The New York Times, o construtor do super iate, o Lürssen Group, recusou revelar a identidade do proprietário, não fosse prática da empresa garantir a “total confidencialidade” dos clientes, escrevem no seu site. Também responsável pela construção do ainda maior Dilbar, está a construir um não menos gigante Luminance, que deverá estar pronto no próximo ano. Curiosamente, o Scheherazade não aparece visível no portfolio de embarcações que a Lürssen exibe online.
Através do controlo de tráfego marítimo, o The New York Times confirmou que em cada um dos dois últimos verões o iate viajou até Sochi, na Rússia, a última das vezes em julho de 2021. E adianta ainda que a construção do mesmo foi seguida pela Imperial Yachts, empresa sedeada no Mónaco que segundo a Reuters gere ainda o Amore Vero, o iate confiscado ao oligarca Sechin — a Imperial não quis comentar.
É conhecida a dificuldade em determinar a origem de um bem como estes, não raras vezes associados a empresas offshore. Registada nas ilhas Marshall, a Bielor Assets Ltd surge como proprietária do Scheherazade, por exemplo, enquanto a empresa de gestão do iate, confirma o capitão do mesmo, está registada nas ilhas Caimão (cujo pavilhão exibe) e utiliza uma villa arrendada na vizinha localidade de Lucca como endereço oficial.
Quanto à tripulação, o próprio capitão Bennett-Pearce confirma que 70% do pessoal a bordo é de nacionalidade russa mas os contactos do jornal revelaram-se pouco frutíferos. Via email, telefone ou redes sociais, o Times tentou estabelecer ligação com pelos menos 17 pessoas. “Poucos responderam”. Sob anonimato, um destes antigos funcionários admitiu que os colegas se referiam à embarcação como “o iate de Putin” e que existem duas equipas. Uma, internacional, em funções quando “o patrão está fora”, e outra, integralmente russa, quando “o patrão está a bordo”. A fonte sondada diz que foi afastada semanas antes do Scheherazade zarpar para o Mar Negro, em 2020. Segundo Michael Forsythe, Gaia Pianigiani e David D. Kirkpatrick, que assinam a investigação, uma outra pessoa justificou que era “demasiado perigoso falar” e outra negou mesmo ter trabalhado no iate.
Bennett-Pearce rejeitou a ideia dessa rotatividade de equipas e o afastamento de tripulantes britânicos, neo-zelandezes e espanhóis para a entrada de russos, explicando que a decisão se prendeu apenas “com questões económicas”.