No dia em que é entregue ao Presidente da República a lista da composição do novo Governo, Marcelo Rebelo de Sousa — que minutos antes se mostrara irritado por só saber da lista pela comunicação social –, Eduardo Ferro Rodrigues e António Costa estiveram todos juntos no Pátio da Galé, em Lisboa, para a abertura solene das comemorações do 50º aniversário do 25 de Abril, quando Portugal cumpre o marco de passar a estar mais tempo em democracia do que em ditadura.

Das bocas das mais altas figuras do Estado e do primeiro-ministro saíram evocações da data, cumprimentos aos capitães de Abril, expressões de alegria pelo marco que se dobra assim no calendário político português. Mas também, num guião comum a todos, muitos avisos e alertas para o futuro da democracia, sem deixar de lado referências à atual conjuntura e à crise internacional derivada da guerra na Ucrânia.

E quem começou foi António Costa, com uma palavra de homenagem aos capitães de Abril. Depois, passou a falar de futuro e assumiu que há problemas “urgentes” a resolver na democracia portuguesa: “Não ignoramos o muito que há ainda a fazer para termos o país que desejamos e merecemos. Não desconhecemos que, como outras democracias, a nossa tem problemas urgentes e desafios imperiosos”.

Insistindo que a liberdade e a democracia são sempre “obras inacabadas” e “nunca estão imunes a ameaças”, enumerou concretamente os desafios que o país tem pela frente nos próximos anos — e os primeiros serão de mais um Governo seu, de maioria absoluta, com algumas destas prioridades inscritas no seu programa: “O populismo, as desigualdades, a corrupção, o medo e o ódio que sempre as ameaçam”; mas também a modernização do Estado, o aumento do crescimento económico, a erradicação da pobreza e a dignificação das condições de trabalho.

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“O primeiro dever dos democratas é o de defender, aperfeiçoar e reforçar a democracia”, remata. “Falei com insistência do futuro e da nossa responsabilidade perante ele, pois o futuro está sempre em aberto e nada está garantido. É o futuro que devemos prevenir e preparar”.

Ferro preocupado com participação dos jovens

O discurso do Presidente da Assembleia da República seguiria, de resto, o mesmo modelo: a congratulação pela data simbólica, mas também os avisos para o futuro. Fazendo a ligação com outra efeméride — completa na quinta-feira 60 anos a crise académica de 1962 contra o regime de Salazar — mostrou-se preocupado com a falta participação política em moldes “convencionais” dos jovens, que têm hoje em dia uma “voz menos audível” nas instituições, embora uma participação política intensa a nível “cívico”.

Ferro pediu, por isso, a “imaginação e reflexão” que falta para os atrair para a política e colocar as prioridades dos políticos em sintonia com as dos mais novos. “O futuro de Abril não se faz sem os jovens”, avisou.

O ainda — já em período de “desconto”, brincou — presidente da Assembleia da República alertou também para a conjuntura em que acontecem estas comemorações, graças à pandemia e à invasão da Ucrânia, “eventos de magnitude tremenda”, cujas consequências políticas, económicas e sociais se sentirão “durante muitos anos”.

E alertou: não adere muito à ideia de uma crise “virtuosa” ou como uma “oportunidade”, embora destes problemas um bom indicador — o de que a solidariedade tem estado presente. Mas os perigos também estão à espreita e Portugal continua a precisar de corrigir falhas graves — o combate à desigualdade é o que escolhe destacar.

Marcelo e a cápsula do tempo

Falando em em último lugar, Marcelo adotaria um guião semelhante. Frisando primeiro que além do marco do tempo de democracia há outro a reter: a Constituição democrática, construída em 1976, já dura há bem mais tempo (45 anos) do que a anterior (41).

A data serve agora para “celebrar o passado”, explicou, e os “heróis de Abril”, que naquele momento “congregaram vontades para romper o passado”. Mas a celebração não pode ser apenas “contemplativa”, insistiu também Marcelo, nisto em sintonia com Costa: é preciso pensar no futuro e no presente, nas “fragilidades e insuficiências” da democracia e da liberdade. “Mais liberdade, democracia, solidariedade e igualdade”, resume.

Também é preciso fazer uma reflexão sobre “o que se perdeu” em relação a países que tiveram sistemas democráticos mais cedo, ou sobre o que se tinha desejado e “nunca chegou”. Por isso, frisou, o caminho até aos 50 anos deve servir para uma “reflexão crítica”.

Para tal, deixou uma série de recados: o festejo não deve servir para “discussões de vaidades, protagonismos que não dizem nada aos portugueses”, nem tentações de reescrever a História. Nem para “afunilar o que deve ser alargado” nem “alienar” ninguém nas comemorações, que deve ser do povo.

“Está nas nossas mãos fazer com que sejam semente do futuro e não apenas revivalismo do passado”. O futuro será, por isso, o “desafio fundamental” – e por ele se verá se estas comemorações são uma “oportunidade ganha ou perdida”.

“Espero, como deputado constituinte, uma oportunidade ganha, uma vitória do futuro”, concluiu Marcelo. No final ouviu-se o hino, mas também interpretações de canções simbólicas, de “O primeiro dia”, de Sérgio Godinho”, a “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho.

O remate da cerimónia coube ao Presidente da República: fechar uma “cápsula do tempo”, que será aberta apenas quando se cumprirem os 100 anos sobre o 25 de Abril de 1974. Quem a abrir, a 25 de Abril de 2074, encontrará cartas a serem abertas pelos jovens nessa altura, uma edição do jornal Público desta quarta-feira e outros objetos alusivos ao 25 de Abril. E também sementes de cravo, depositadas pelo próprio António Costa; a reprodução das assinaturas dos deputados constituintes, deixada por Ferro; e uma cópia da Constituição, que coube a Marcelo depositar, selando assim a cápsula feita de cortiça.