Estamos em 2017. “Esta é a tua primeira retrospetiva?”, pergunta o moderador numa sessão em 2017 no Lincoln Center. “Sim, é”, responde uma realizadora de cabelo grisalho, em paz, transmitindo a ideia de que não é bem ali que deveria estar. “Como é que isso é possível?”, responde, surpreendido. Faz-se uma pausa. Há silêncio, a sala ri-se, a realizadora fica meio atrapalhada. “Acho que é perfeito”, garante, com um jeito infantil. A surpresa do entrevistador é legítima. Afinal, estava perante um dos pesos pesados femininos do cinema, com uma carreira concisa de apenas 7 longas-metragens (umas “falhadas” para alguns, umas de culto para outros). Que tinha vencido o Óscar de Melhor Argumento pelo filme “Piano” (1993), que já tinha vencido a estatueta em Cannes, sendo a primeira mulher a fazê-lo. Ainda assim, desde 2009 que a tal mulher sorridente de cabelo grisalho, Jane Campion, não se catapultava para uma longa metragem (“Bright Star”), tendo-se virado mais para a televisão.
Costuma dizer-se sobre alguém que está há muito tempo à espera para ganhar: “o que ela andou para aqui chegar”. Sim, certo, mas Jane Campion é dona do seu tempo, do seu espaço, do seu momento. A realizadora não andou, flutou, tem flutuado entre o mundo cinematográfico indie e uma Hollywood com H de homem desde que pegou na câmara e filmou a sua primeira curta-metragem a sério, “Sweetie”, que lhe valeu mais um prémio em Cannes. E agora ganhou o Óscar de Melhor Realização por “O Poder do Cão” (Netflix), western homoerótico contido, perverso, lento, intenso, nada consensual.
A sua lente, sempre atenta ao pormenor, ao lado feio, escondido, gore e bonito, trascendental, sonhador, tem olhado para as mulheres (não como vítimas, bem pelo contrário), para os desesperados, sonhadores e para os que reprimem a líbido para serem o que não querem. Não é que não se importe com a narrativa, mas a sua sensibilidade microscópica leva-a a gastar o seu tempo com as personagens, a conhecê-las ao limite. É por isso que muitos poderão achar que os seus filmes não são para toda a gente. Porque nem toda a gente está disponível para aceitar que o tempo é um conceito que tem de ser cuidado.
Desta vez, a realizadora olhou para um romance de Thomas Savage de 1967 sobre a vida de alguém reprimido num estado do Montana conservador e rural nos anos 20 e sentiu um apelo. Uma energia, só podia, não fosse ela uma adepta da meditação desde os 20 anos. Estava prestes “a reformar-se”. “Estava a pensar reformar-me antes de fazer este filme. Mas depois pensei: este vai ser um dos grandes. Quando tentei perceber quem tinha os direitos, percebi que me tinha agarrado. Percebi que tinha de o fazer”, confessou ao The Guardian. O seu temporizador, quase sempre uns passos à frente, estava certo.
[“O Poder do Cão”:]
Filha de pais artistas, em busca de explorar o canto escuro do ser humano
Jane Campion tinha de ir parar às artes. Nasceu em Wellington, na Nova Zelândia num berço rodeado de artistas. Os pais fundaram uma companhia de teatro. Ele era diretor, traíu-a várias vezes, ela atriz famosa, entrou em depressão. Filha e mãe chegariam a contracenar em “The Audition”, mas a realizadora não seguiria as pisadas da progenitora. Foram pais ausentes — tão ausentes que contrataram uma ama terrível, que serviria, de forma inconsciente, de inspiração para uma das personagens em “The Power of The Dog”. Jane cursou em antropologia, interrompeu os estudos para viajar e voltou para Sidney onde estudaria pintura. E mesmo antes de acabar um dos cursos já se tinha lançado no cinema, com a curta metragem “Tissues”, feita nos anos 80. Valeu-lhe um lugar na Australian School of Film, Radio and Television.”Até aos 24 anos não percebia a minha veia artística”, confessou à Vanity Fair.
O que se seguiu foi uma exploração dessa tal dúvida, de uma curiosidade ingénua pelo canto mais obscuro do ser humano, que tentava encontrar resposta numa indústria dominada por homens. Quer fosse através de um seio familiar em “An Exercise in Discipline: Peele” (1982) — colegas seus da faculdade disseram-lhe para não terminar o filme — ou em “A Girl’s Own Story” (1984) — que Nicole Kidman, sua grande amiga, recusou por ter um beijo lésbico. Tudo era descoberta, desafio, provocação. Brutalidade e ternura. Mas não deliberada, não vincada, sem performances bacocas, supérfluas, que se esgotam num tweet para o mundo ver.
Depois de ter ganhado alguma notoriedade com “Peel”, decidiu, no seu próprio compasso de espera, que estava na hora da primeira longa-metragem. Mais uma vez, em “Sweetie”, Campion mostra uma mulher, jovem, cáustica, em conflito permanente com a sua família. A crítica detestou-o, ainda que outros artigos sobre a sua carreira garantam que não. “Se não estivesse já em pré-produção de outro filme, nunca mais teria feito nenhum”, revelou à Vanity Fair. Conta que passou um dia inteiro a chorar num hotel em Cannes.
Mas eis que chegamos ao “O Piano” (1993), o seu apogeu, que bebeu da era vitoriana da Grã-Bretanha. Um triângulo amoroso entre uma escocesa muda que viaja com a filha e o piano até à Nova Zelândia colonizada pelos britânicos, mais o marido impostor e severo e um novo dono do instrumento. É considerado um dos melhores 100 filmes essenciais para a US National Society of Film Critics. Fez mais de 40 milhões de dólares. Jane Campion tornou-se na segunda mulher a vencer o prémio de Melhor Argumento Original nos Óscares. Dizem que foi aqui que começou o seu legado.
Entre sucessos, fracassos e a perda de um filho
“As mulheres deram à luz o mundo inteiro!”, gritaria, em entrevista ao The Guardian, para expressar a sua desilusão, num jeito jocoso, com a indústria. Mas não foi só a carreira que lhe pregou partidas. Poucas semanas depois de atingir o estrelato, Jane Campion perdeu o filho com apenas 12 dias. Só surgiria em público dez meses depois, para a cerimónia dos Óscares. Já estava grávida da filha, Alice, que tem hoje 27 anos e resolveu tornar-se atriz. “A maior parte do meu trabalho vem do meu lado empático. Não estou, de facto, a controlar as minhas emoções ou outra coisa qualquer. É uma espécie de verdade psíquica”, garante.
Seguiram-se três filmes menos bem sucedidos, que viajaram entre um limbo repleto de críticas ácidas a plateias mais pequenas com ovações de pé: “The Portrait of a Lady”, “Holy Smoke!” e “In the Cut”. Entre este último filme e “O Poder do Cão” existe uma distância de 18 anos, só interrompida por “Bright Star”. Uma grande realizadora para pequenas (e grandes) audiências que atravessa temas seus sem os tornar completamente seus. Afinal, a mudança exige sempre tempo. “Sou cuidadosa com os ossos que roeu”, disse ao Los Angeles Times.
E foi por isso que, mais uma vez sem correrias, resolveu dar o seu contributo em televisão com a mini série “Top of the Lake”, um hit australiano com uma Elisabeth Moss em ascensão, sobre o desaparecimento de uma jovem grávida de 12 anos. Mais uma catrefada de prémios, onde se incluem uns quantos Emmys. Começou em 2013, terminaria em 2017. Pode ou não vir a ter uma terceira temporada.
Não é que Jane Campion queira alcançar a perfeição em tudo o que faz, mas exige, nem que seja a si mesma, uma grande preparação em tudo o que faz — numa das primeiras curtas-metragens foi parar ao hospital por causa do excesso de trabalho. Mesmo que a sua cinematografia nos seduza para um mistério, para o desejo sexual ou para os mitos, Campion quer que tudo funcione. Só trabalha no que quer, ao ritmo que quer, com o intuito que quer.
Os atores são família, os filmes são trabalho até à exaustão
Num extenso perfil do New York Times, temos um vislumbre do seu método de trabalho, destacado por praticamente todos os atores que atravessaram a sua carreira. Por vezes, demora anos até captar o ambiente certo para o próximo projeto. Por isso, Jane Campion dá liberdade aos atores e quer explorá-la com eles. Na pré-produção de “Power of The Dog”, viajou até Montana um par de vezes para visitar o lugar onde Thomas Savage escreveu o romance que inspirou o filme.
Enviou Benedict Cumberbatch, que dá corpo a Phil, um rancheiro tóxico, hiper-masculino, culto e sujo, para o mesmo sítio para aprender um pouco de tudo: andar a cavalo, fazer cordas, tocar banjo ou castrar touros (Campion diz que uma das cenas que mais a convenceu a aceitar o desafio foi precisamente esse ato profundamente masculino de castração). Esse tal mundo patriarcal que se vê em “O Poder do Cão” liga-se, quase intimamente, àquilo que Campion tem sentido na pele. O cruzamento destes dois polos que se tocam ficou bem espelhado em 2007, com uma fotografia em Cannes onde Campion surge como a única mulher a vencer o prémio em 50 edições do festival. As imagens ficcionais, cheias de camadas que escondem a nossa essência, tão bem trabalhadas pela neozelandesa, encontram-se aqui com a realidade.
O ator britânico é o primeiro homem protagonista na carreira da realizadora. “Eu sei que este filme seria uma despedida para mim [da fase de empoderamento feminino]. O movimento #MeToo provavelmente teve influência na decisão de aceitar fazê-lo. Mas não tomo decisões conscientes em relação ao que vou fazer. É mais a energia que surge e que me inspira. Não tentei perceber este mundo masculino do filme, fui atrás do que sentia”, disse ao The Guardian.
Apesar desse rigor e dessa fluidez, nos ensaios optou por uma estratégia diferente. Levou os atores em caminhadas, fizeram exercícios e improvisaram. Cozinharam juntos, praticaram “o método” em salas separadas, Cumberbatch e Jesse Plemons (George, o irmão carinhoso) dançaram valsa juntos para explorarem a sua intimidade. Quanto à realizadora, fez uma escolha nova: resolveu explorar os sonhos com um analista à altura. “Claro que os sonhos da Jane são ricos em imaginação. São sexuais, fantásticos, espirituais, com orquídeas a explodir sangue”, disse Cumberbatch ao NYT. “Os sonhos guardam secretos à mente”, referiu a realizadora.
É divorciada, não acredita, hoje, no casamento. Quer fazer uma escola de cinema pop up para equilibrar a balança entre os que têm dinheiro para aprender e os que não têm. Sofia Coppola voluntariou-se para ser professora. Depois de conquistar Veneza, Cannes, Baftas, Globos de Ouro, venceu o Óscar de Melhor Realização.
Diz que no início da carreira, a excitação de pegar na câmara preenchia-lhe a alma. Já não sente isso. Perdeu talvez o lado mais ingénuo da provocação, mais perigoso da sétima arte. Nem consegue ficar muito incomodada com críticas mais ferozes — tal como a do ator Sam Elliot, que criticou o homoerotismo de “O Poder do Cão”. Mas está tudo bem. Não sabe bem o que vem a seguir. Bastará sentar-se na cama, isolar-se, escrever. Ou andar. Adora caminhas. Afinal, o que ela andou para aqui chegar não se descobre. Porque aquilo que quer está sempre no próximo passo.