A música cala-se abruptamente e o filme mergulha num silêncio profundo que dura alguns segundos. De um lado, há quem acene com a cabeça ao ritmo da melodia, do outro uma mulher chora, emocionada — tudo sem som. Para Frank Rossi o único estímulo é o visual — e para os espectadores que, de repente, provam uma migalha do que é ser surdo profundo, está aqui a confirmação de que “No Ritmo do Coração” (“CODA”) é uma das histórias mais tocantes e especiais do ano.
“As pessoas que ouvem provavelmente nunca pensaram no que é terem de estar em silêncio durante 30 segundos e terem paciência. Isso foi muito bonito porque virou o jogo. Então, agora, podem todos ver o meu lado da história e serem uma mosca na parede do meu mundo silencioso”, explicou Troy Kotsur numa entrevista concedida à cadeia ABC Chicago a 22 de março.
Seis dias depois, esse mundo transferiu-se para o Dolby Theatre, em Los Angeles, onde uma plateia se levantou para aplaudir a vitória de Kotsur como Melhor Ator Secundário. Na cerimónia dos Óscares, que decorreu na madrugada de segunda-feira, 28, o ator não ouviu as palmas estrondosas que o acompanharam até ao palco mas registou o entusiasmo e a emoção da plateia.
É o segundo ator surdo (e o primeiro masculino) a vencer um Óscar. A estatueta irá juntar-se ao Bafta, ao SAG e a dezenas de outras distinções que tem conquistado nesta temporada de prémios. Frank Rossi tem sido descrito como o “papel revelação” de Troy Kotsur, apesar dos 53 anos do ator. A explicação é simples: as oportunidades para atores surdos são quase inexistentes no cinema. “No Ritmo do Coração” tem três surdos no elenco e nem esse número foi fácil de conseguir. Conta a história de Ruby Rossi (Emilia Jones), a única ouvinte de uma família de surdos (“CODA”, o nome original do projeto, significa Child of Deaf Adults, ou seja, filho/a de adultos surdos). Todos dependem dela, que serve de intérprete, e essa ligação é muito difícil de ultrapassar quando a adolescente tem a possibilidade de perseguir o sonho de cantar.
[o trailer de “CODA”:]
Troy Kotsur perseguia o seu sonho, não o de cantar mas o de representar, há mais de 40 anos. Nasceu em Mesa, no Estado do Arizona (EUA), a 24 de julho de 1968 e os pais descobriram que era surdo aos nove meses. Frequentou uma escola para crianças surdas, onde uma professora o incentivou a fazer teatro. Porém, foi nos filmes e nas séries que percebeu que era exatamente aquilo que queria para a sua vida.
Cresceu nos anos 70 quando nem sequer na televisão havia programas com língua gestual. Tudo o que absorvia era visualmente, sem qualquer som. Sonhou através do universo “Star Wars”, os seus sabres de luz e as naves espaciais. Viu o primeiro filme 28 vezes.
Ficou fascinado com “Tom and Jerry” porque os desenhos animados não tinham diálogo. “Sentia uma ligação.” Todas as manhãs, no autocarro a caminho da escola, representava o episódio da noite anterior para os outros colegas surdos, já que a maioria não tinha televisão. “Apercebi-me de que adorava contar histórias e queria aprender mais sobre a arte de representar”, recordou à NBC News.
Nas livrarias procurava revistas de cinema e durante horas lia tudo sobre os bastidores das filmagens. No início, os pais não ligavam muito a esse entusiasmo, achavam que seria temporário. “Após alguns anos começaram a ficar nervosos. DIziam: ‘Troy, porque não tiras um curso? Talvez pudesses ser engenheiro ou professor.’ Eu era teimoso e continuei”, contou em entrevista ao “The New York Times”.
Na Universidade Gallaudet, em Washington, estudou Teatro, Televisão e Cinema. Juntou-se depois ao Teatro Nacional dos Surdos e no West Theatre, em Los Angeles, fez mais de 20 produções. Numa delas conheceu a mulher, a atriz Deanne Bray. Têm uma filha, Kyra, que, tal como Ruby, a personagem principal de “No Ritmo do Coração”, é CODA (filha de pais surdos). O facto de as duas jovens terem praticamente a mesma idade e serem apaixonadas por música fez com que Troy Kotsur desenvolvesse uma ligação profunda e imediata com a personagem que interpreta — numa das cenas mais bonitas do filme, Ruby canta para o pai que, incapaz de ouvir qualquer som, coloca uma mão no pescoço da filha para sentir as vibrações da voz.
“É muito importante não pensarmos em atores surdos de uma perspetiva limitativa, porque enquanto pessoa surda, eu posso conduzir, cozinhar, fazer sexo, posso fazer todas essas coisas. A única coisa onde existe uma barreira é na comunicação. E é só isso”, explicou ao “The New York Times”.
Durante décadas acumulou participações pequenas e insignificantes (“Criminal Minds”, “CSI: Nova Iorque” e mais recentemente “The Mandalorian”). O dinheiro era escasso, chegou a dormir no carro e nos camarins dos teatros.
Como é que aguentou a rejeição durante tantos anos? Foi uma questão de teimosia. “Tinha de continuar a avançar, só para prová-lo a mim próprio.” E a persistência nem sequer é de agora, começou nos anos 90. “Tinha de gastar 300 dólares em envelopes e selos e mandar as fotografias a 300 diretores de casting. Disso, talvez conseguisse uma audição. Mas não conseguia o papel depois dessa audição.”
Nem o trabalho em “No Ritmo do Coração” foi conquistado facilmente. Entre o casting e a contratação passou um ano e meio. “Queriam [os produtores] usar atores da lista A [nomes conhecidos].”
O mesmo já tinha acontecido em “O Som do Metal”, filme de 2019 sobre um baterista que começa a perder a audição. Forest Whitaker e Robert Duvall eram os nomes em cima da mesa para a personagem Joe, papel para o qual Kotsur fez um casting. Não foi o escolhido mas Joe acabou por ir parar às mãos de Paul Raci, filho de pais surdos, decisão que valeu uma nomeação para o Óscar de Melhor Ator Secundário
O empurrão final para conseguir o papel de Frank Rossi acabaria por ser dado por Marlee Matlin, que no filme interpreta a mulher de Frank, Jackie. Foi ela a primeira atriz surda a vencer um Óscar (Melhor Atriz em “Filhos de Um Deus Menor”, 1986) e há muito que via Kotsur atuar nas produções do Deaf West Theater. Reconhecendo-lhe talento, sabia que um dia trabalhariam juntos.
As filmagens duraram 30 dias e, antes disso, Kotsur passou duas semanas em Gloucester, Massachusetts. Acordava de madrugada para acompanhar os pescadores locais, frequentava os bares da zona e foi pensando numa forma de a sua personagem poder usar palavrões em língua gestual — uma decisão inédita no cinema, onde também nunca tinha havido tantos atores surdos no mesmo elenco (e são apenas três). Foi igualmente necessário adaptar a forma de comunicar. “Tinha de usar luvas de borracha pesadas e isso afeta a forma como faço os símbolos e sinais”, explicou à publicação “Shondaland”.
No filme diz uma única palavra, “go! (vai!)”, quando incentiva a filha a ir para a faculdade, mas essas duas letras são de uma intensidade tão grande que funcionam como o espelho de toda a sua interpretação. Passou inúmeras horas a ensaiar a sílaba que o próprio nunca conseguiria ouvir. No teatro já tinha tido uma experiência semelhante na peça “A Streetcar Named Desire”, onde tinha de gritar “Stella”. A perceção mais fidedigna que consegue ter da sua voz acontece quando pergunta ao público. “Uma pessoa descreveu-a como o sentimento de estar confortável e aconchegado na cama”, contou ao site “boston.com”.
Fazer “No Ritmo do Coração” foi tão avassalador — muito antes dos elogios, da estreia em Sundance e dos 25 milhões de dólares (22,7 milhões de euros) que a Apple TV+ pagou pelo filme — que o ator demorou muito tempo a libertar-se da personagem, incluindo a barba comprida. “Sentia mesmo falta dele e andei a lutar durante cerca de seis meses. A minha mulher queixava-se: ‘Troy, por favor cortas a barba? Nem consigo beijar-te.’”, contou ao “The New York Times”.
Garante que está a aproveitar todos os momentos de sucesso que a produção — em Portugal disponível na Apple TV+ — lhe tem dado e que se sente finalmente parte da indústria cinematográfica. “No passado era muito tímido e não tinha vontade de me aproximar das pessoas. Sinto que agora são elas que estão a aproximar-se de mim. Portanto, sinto um certo alívio. […] Parece que estão a olhar para mim como um artista e que apreciam realmente o meu trabalho. Esse reconhecimento é uma bênção”, disse à cadeia local da ABC em Chicago.
Ao mesmo tempo, acumula situações caricatas por toda esta experiência ser tão surreal. “Quando aceitei o SAG [na categoria de Melhor Ator Secundário] e fiz o meu discurso, esqueci-me que tinha o telemóvel no bolso. Esteve a vibrar durante todo o discurso. Tive de ignorar e continuar. Não tinha noção de que os meus amigos me enviariam aquelas mensagens todas. Foi realmente avassalador”, contou em entrevista à NBC News.
O seu próximo projeto é “Flash Before the Bang” e terá sete atores surdos, record que até aqui pertencia a “No Ritmo do Coração”. Além disso, Troy Kotsur multiplica-se em entrevistas onde não se cansa de falar no entusiasmo que tem em relação ao futuro. Está a ler argumentos, quer realizar e encontrar formas de colocar atores surdos em papéis que inicialmente podem não ter sido pensados para eles.
“Vejo muitas histórias de sucesso — médicos, advogados, bombeiros. Há pessoas surdas em todo o lado mas não as vemos no ecrã. Portanto, as pessoas ignoram isso”, lamentou na entrevista dada a “Shondaland”.
Em fevereiro deste ano, pouco mais de um mês antes da cerimónia mais importante do cinema, garantia em conversa com o “The New York Times” que a vitória de que realmente precisava estava conquistada. “Não interessa que eu ganhe ou não. O meu nome já está nos livros de História. Quando já não estiver neste planeta, isso vai perdurar”. Confirma-se, vai perdurar, mas não apenas como nomeado. Troy Kotsur é o primeiro ator masculino surdo a vencer um Óscar.