Enviada especial do Observador à Hungria

Algumas palavras de ordem e dois X gigantes. É este o cartaz que está a ser feito num coletivo LGBT que o Observador visitou, no centro do Budapeste, em vésperas da eleição deste domingo. “Para uma pergunta estúpida, uma resposta estúpida”, explica Ákos Modolo, representante da associação Szimpozion Egyesület que recebe o Observador, para justificar o cartaz que será pendurado brevemente num edifício da capital — e que é um apelo a um voto nulo.

Não nas eleições parlamentares, que terão lugar este domingo, mas no referendo que se realizará no mesmo dia. Em causa está uma consulta pública sobre a chamada Lei de Proteção das Crianças, aprovada pelo Parlamento húngaro em junho de 2021, que vai agora a votos depois de a Comissão Europeia ter questionado a validade legal da lei. Oficialmente, o objetivo da lei é o de regular o bem-estar infantil e proteger as crianças de conteúdo sexualmente explícito e de atos de pedofilia, mas Bruxelas considera que é na verdade um instrumento para promover a discriminação da comunidade LGBT. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, chegou mesmo a classificar a nova lei, que alguns dizem ser semelhante à regulação que vigora na Rússia  contra a “propaganda gay”, como “uma vergonha”.

O governo de Budapeste rejeita as críticas. “As crianças são o nosso maior bem e a sua educação é um direito inalienável e uma obrigação dos pais”, resumiu a Presidente Katalin Novák ainda esta sexta-feira. O primeiro-ministro Viktor Orbán já tinha dito em julho, para justificar a convocação do referendo, que “o futuro” das crianças húngaras “está em risco”. “Não podemos deixar que Bruxelas leve a sua avante”, afirmou o líder do Fidesz.

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Voluntários LGBT fazem cartaz a apelar ao voto nulo no referendo

Em causa está, por exemplo, a educação sexual nas escolas para questões LGBT, que o governo considera que devem ser da exclusiva responsabilidade das famílias. Este domingo, os eleitores terão de responder às seguintes perguntas:

  • “Apoia o ensino da orientação sexual a menores em instituições de ensino público sem consentimento dos pais?”
  • “Apoia a promoção de terapia de mudança de sexo para crianças menores?”
  • “Apoia a exposição sem limites de crianças menores a conteúdo sexualmente explícito que pode afetar o seu desenvolvimento?”
  • “Apoia que seja mostrado conteúdo sobre mudança de sexo a menores?”

Os ativistas LGBT húngaros consideram que as perguntas usadas no referendo são desequilibradas e acusam Budapeste de estar a usar um estratagema para aprovar a lei de forma subreptícia. “Quer dizer, até a pessoa mais progressista do mundo provavelmente não responderia ‘Sim’ a nenhuma destas perguntas…”, diz ao Observador Ákos Modolo. Por isso, várias organizações de defesa dos direitos humanos pedem aos eleitores que são contra a lei que ou se abstenham ou votem nulo, colocando uma cruz tanto na opção “Sim” como na opção “Não”. Se não houver pelo menos 50% de votos válidos por uma das opções, o resultado do referendo não é considerado vinculativo, de acordo com a lei húngara.

Um livro infantil com “aviso legal”. Aplicações práticas da lei são reduzidas

Para ativistas como Ákos, a marcação deste referendo foi uma estratégia por parte do governo do Fidesz para tentar mobilizar a sua base eleitoral para a eleição legislativa: “É ‘pão e circo’, ajuda a distrair as pessoas dos problemas reais como a saúde, a educação e a corrupção”, afirma o responsável da Szimpozion Egyesület, que fala numa tentativa de fazer da comunidade LGBT “um inimigo da sociedade”, à semelhança do que diz ter ocorrido com os refugiados na crise migratória de 2015.

Apesar de a lei ir a voto popular este domingo, ela já se encontra oficialmente em vigor na Hungria desde junho, embora a sua aplicação tenha contornos algo vagos. Um dos casos concretos é o da venda de alguns livros que podem ser oficialmente considerados lesivos para crianças, como aconteceu com o livro infantil “Os Contos de Fadas São Para Todos”. A editora que publicou o livro, a associação LGBT Labrisz, garante que a obra tem como objetivo sensibilizar as crianças para o respeito pelo outro, com pequenas mudanças em contos tradicionais infantis — aqui, um príncipe casa-se com outro príncipe e “vivem felizes para sempre”, por exemplo.

O livro “Os Contos de Fadas são Para Todos” é agora vendido com um aviso legal

As autoridades húngaras, porém, consideram que o livro pode violar a Lei de Proteção de Crianças se não for vendida com um aviso a tapar a capa, onde se diz aos leitores que “esta é uma obra com comportamento inconsistente com os papéis de género tradicionais”. Até agora, só há registo de um caso de uma livraria multada por vender o livro sem o respetivo aviso.

Pelo pouco impacto em termos práticos que a lei tem tido até ao momento, bem como pela menor relevância que o assunto assumiu na campanha face a temas como a guerra na Ucrânia, as sondagens indicam que o referendo pode nem vir a ter participação suficiente para produzir um resultado vinculativo. Um resultado que para ativistas como Ákos Modolo é reflexo de uma maior aceitação por parte da sociedade húngara face às minorias sexuais: “Tenho a sensação de que algo está a mudar. Pode não ser imediato em termos políticos, mas a aceitação na sociedade dos temas LGBT é maior agora: há personagens gay nas novelas, influencers no TikTok, até políticos a assumirem-se”, diz o ativista, que conta como a aprovação da lei levou alguns dos seus amigos — muitos até conservadores — a “saírem do armário”. “Esta pode ser uma batalha perdida para nós, mas trouxe-nos uma visibilidade nunca vista e creio que isso até pode jogar a nosso favor”.