O jornalista António Caeiro lança esta quinta-feira “Os Retornados de Xangai”, livro que dá a conhecer “uma comunidade portuguesa, singular e única”, através das histórias de vida de quem a integrou, mas que conta também “a história da China”.

Esta comunidade, que viveu durante um século em Xangai, entre vários impérios e num período conturbado da história da China, já quase não falava português e tinha de Portugal “uma imagem mítica”, segundo o autor.

“É a história de uma comunidade muito singular, única talvez na nossa história portuguesa. No mundo, também não haverá muitos casos assim. Porque […] se sabe quando começou e quando se extinguiu”, referiu o autor, numa conversa com a Lusa, sobre o livro.

“Durou num período de cerca de um século, à margem de vários impérios, o português, o inglês e o chinês, e num período invulgarmente conturbado […] da história da China, que eu procurei também desenhar, para se perceber em que mundo essa comunidade evoluiu”, acrescentou António Caeiro, que foi durante 19 anos correspondente da agência Lusa em Pequim.

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Radicados há várias gerações em Macau, na costa sul da China, os portugueses foram dos primeiros estrangeiros a estabelecerem-se em Xangai, em meados do século XIX e durante os cem anos seguintes constituíram uma das maiores comunidades, escreve no livro.

Viveram os efeitos da Guerra do Ópio, a queda de uma monarquia multimilenar, a ocupação japonesa e, por fim, uma longa guerra civil, que terminou com a vitória do Partido Comunista, em outubro de 1949, lê-se ainda no livro.

Segundo os censos de 1930, consultados pelo autor, entre as comunidades estrangeiras residentes em Xangai, 48, a portuguesa era a sexta mais numerosa, com 1.599 pessoas.

António Caeiro tomou conhecimento da existência desta comunidade, em julho de 1991, seis meses depois de ter chegado a Pequim, por causa do programa chinês da visita oficial do então ministro da Educação português Roberto Carneiro à República Popular da China. “No programa que os chineses tinham da visita, estava lá, num dos dias, ‘visita à terra dos ancestrais do senhor Roberto Caneiro'”, explicou à Lusa.

Entre eles, o próprio pai do então ministro, Artur Carneiro, mais conhecido como “Art” Carneiro, nome artístico do músico pioneiro do jazz em Portugal, história que o jornalista conta no livro.

Estes portugueses “trabalhavam em empresas inglesas e americanas, bem como em algumas francesas e tinham uma relação com Portugal que era um bocado mítica”, referiu, ilustrando: “Aliás, cada um deles escrevia o nome à sua maneira“.

António Caeiro considera que era uma comunidade com algumas diferenças sociais, também: “Havia uma pequena elite que gozava de alguma prosperidade”.

“Estavam aculturados […] e muitas empresas contratavam-nos como secretários, como tradutores, como contabilistas. Em muitos casos, não eram tão bem pagos como os ingleses ou os americanos ou outros estrangeiros, mas tinham um papel importante na economia local”, frisou.

O caso dos tipógrafos portugueses é, para António Caeiro, “um fenómeno”, que não fazia ideia e que ainda hoje é considerado mal estudado. “Eu descobri isso através de um historiador de Hong Kong, mas há documentos que atestam isso, que havia quase um monopólio dos tipógrafos portugueses, não só em Hong Kong e Xangai, mas nos portos chineses abertos ao comércio internacional”.

“Era um ofício que aprendiam em Macau, no colégio São José e em Hong Kong, em quase todos os jornais, os compositores e tipógrafos eram portugueses. Tornou-se uma imagem de marca”, explicou.

Os portugueses de Xangai também eram socialmente bem vistos. “Eram conhecidos pela animação, tinham vários clubes, um deles o Lusitano”, prosseguiu.

Mas nem falavam português. “Isso foi uma das coisas que me impressionou, porque eles próprios já não falavam em português, só os mais velhos, quase todos falavam entre si em inglês”, confessou.

Por isso, “a maioria não veio para Portugal, dispersou-se pelo Brasil, Austrália, Canadá, Estados Unidos”, referiu.

Segundo o autor, “há dois grandes momentos de êxodo da diáspora” de Xangai. Um deles é quando se dá a invasão japonesa de 1937, que para os chineses representa o início da Segunda Guerra Mundial.

“Foi uma invasão brutal, sobretudo a batalha de Xangai, que durou várias semanas […] e que causou uma destruição brutal, e aí muitas centenas de famílias estrangeiras, incluindo portuguesas saíram de Xangai, foram retiradas”, relata. “Uma parte ficou em Hong Kong, onde tinham família, outra parte foi para Macau”, acrescentou.

O segundo momento é o da guerra civil entre comunistas e nacionalistas. “Depois o Exército Vermelho entra em Xangai, em maio de 1949, e segue-se uns meses depois a proclamação da República Popular e a comunidade estrangeira começa a esvaziar-se a ritmo acelerado”, adianta o autor.

Assim, os portugueses de Xangai foram “os primeiros retornados”, salientou. “Eram retornados que regressaram para um sítio que era Macau, para depois partirem para um outro sítio, o que havia disponível”, sublinhou.

Ao enquadrar a vida desta comunidade no cenário em que viveu, o autor acaba também por admitir que o livro conta a história da China. “Uma história impressionante, tão conturbada e tão violenta, mas, ao mesmo tempo, tão inspiradora. E o meu dilema era que com a história da China, que é invulgar, se esmagassem as histórias humanas que eu queria contar”, admitiu.

“Tem a ver com uma história invulgarmente conturbada, de um século, desde a guerra do ópio até 1949, à tomada do poder pelo partido comunista”, frisou.

Por isso, “Os Retornados de Xangai” “não é um livro sobre a China, mas também é um livro sobre a China”.

“Uma história da China com portugueses dentro”, concluiu.