A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considera “simplesmente absurdas” a esmagadora maioria das alterações legislativas aprovadas no final do ano passado pelo Parlamento por proposta conjunta do PS e do PSD para reforçar os impedimentos dos magistrados judiciais. A ASJP não tem dúvidas de que a lei que entrou em vigor no dia 21 de março terá “efeitos potencialmente caóticos” no sistema judicial que obrigam a uma “necessária correção por intervenção legislativa urgente” do Governo de António Costa, lê-se no parecer da ASJP a que o Observador teve acesso.
A direção da ASJP liderada pelo desembargador Manuel Ramos Soares concorda que é fundamental que existam garantias de independência dos juízes nas diferentes fases processuais e que os impedimentos são uma ferramenta importante para isso mesmo. Contudo, “devem restringir-se às situações em que essa participação do juiz no processo é idónea a gerar dúvidas objetivas sobre a possibilidade de pré-vinculação a um juízo positivo ou negativo sobre a culpabilidade do arguido.”
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E os representantes dos juízes até concordam com uma das alterações aprovadas — relacionada com a “impossibilidade do juiz que mandou extrair certidão para procedimento criminal” por falsidade de testemunho ou de depoimento “poder intervir no processo que daí resultar.” Tal como concordam que fará sentido o “impedimento do juiz que aplique uma medida de coação privativa da liberdade para participar, já não apenas no julgamento, como até aqui, mas também na instrução”. E concordam porque admitem que as duas situações poderão colocar em causa a imparcialidade do juiz.
Mesmo assim, lê-se no parecer, a última opção reforça a “perspectiva hiper-garantística do processo penal” e está muito alinhada com a “advocacia dos processos de criminalidade económica e financeira mais mediatizados”.
As alterações “simplesmente absurdas”
Contudo, e na perspetiva dos juízes, os aspetos positivos das alterações legais ficam-se por aqui. “No mais, as novas regras de impedimento são, em muitos casos, simplesmente absurdas”, lê-se no parecer.
A ASJP faz questão de elencar uma a uma das “novas situações de impedimento absolutamente desnecessárias”. No total, são 33, das quais se destacam atos tão banais quanto a “tomada de conhecimento e abertura de correspondência apreendida”, a decisão sobre a “constituição de assistente” ou a “decisão sobre a sujeição do inquérito a segredo de justiça”. Muitos desses atos, refira-se, podem ser tomados por juízes de instrução que estejam de turno ou em regime de substituição.
E as consequências desses 33 novos impedimentos são, na perspetiva dos juízes, de um “potencial destrutivo” verdadeiramente arrasador e, em muitos casos, “irrecuperável”. A saber:
- “Não há, no plano das garantias de defesa, a mínima justificação para estas situações de impedimento” porque “em nenhum destes atos o juiz proferiu alguma decisão sobre o mérito do objeto do processo em que tenha formulado um juízo sobre a culpabilidade”;
- Com esta “imensa panóplia de atos” os sujeitos processuais “poderão afastar o juiz por razões desviadas, em flagrante violação do princípio do ‘juiz natural’;
- “a lei torna o sistema simplesmente ingerível”, já que a lei pressupõe que “é possível ter cinco juízes para cada processo” para as diferentes fases processuais e em todas as comarcas. Quando, na realidade, tal só será possível em “Lisboa, Porto e pouco mais.”
- Já nos processos de grande dimensão (e, por natureza, os mais mediáticos), há muitos juízes que participam nos autos devido aos turnos das férias judiciais e de fim-de-semana. Consequência? “Vão aumentar as probabilidades de intervenção involuntária em julgamento de juízes impedidos, que anos depois não se lembram de ter tido essa intervenção irrelevante e esporádica. Isso trará novos riscos de anulação de julgamentos, por razões sem qualquer préstimo”, lê-se no parecer.
- E, por último, a “nova lei vai abrir a porta a dúvidas interpretativas e incidentes processuais com efeitos potencialmente caóticos. Uns juízes vão aplicar a lei nova e declarar-se impedidos; outros entenderão o contrário e continuam em processos semelhantes. E muitos sujeitos processuais — “especialmente aqueles que é fácil antecipar” — vão pedir “o afastamento dos juízes do processo ou mesmo para questionar a validade de atos já praticados por juízes que agora ficariam impedidos.”
Daí que que a ASJP proponha a “necessária correção por intervenção legislativa urgente” da proposta “conjunta” do “PS e PSD” que “nada têm a ver com as políticas de combate à corrupção e não cumprem, sequer, o objetivo de tornar o processo penal mais célere”, lê-se no parecer.
A bola está do lado do Governo de António Costa, nomeadamente de Catarina Sarmento e Castro, a nova ministra da Justiça, e de Ana Catarina Mendes, a nova titular da pasta dos Assuntos Parlamentares.