O conselheiro Henrique Araújo criticou duramente várias alterações promovidas pela Estratégia Nacional Contra a Corrupção que vão entrar em vigor na próxima semana. Um alargamento “excessivo” dos impedimentos dos juízes, o fim do limite das testemunhas em julgamento criminal e a flexibilização de recursos ordinários para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foram os principais alvos da censura do presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Aproveitando a tomada de posse do desembargador Jorge Loureiro como presidente da Relação de Coimbra, Henrique Araújo censurou aquelas alterações porque, no seu entender, representam “mais um obstáculo à celeridade e eficácia da justiça penal” — uma preocupação central do presidente do Supremo desde o início do seu mandato, como explicou na sua primeira entrevista ao Observador. Apesar das alterações só entrarem em vigor daqui a quatro dias e terem sido aprovadas por unanimidade pela Assembleia da República, o líder do STJ já diz que “é urgentíssimo repensá-las.”

Henrique Araújo: “Há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida, temos de cortar com isso”

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Foi precisamente pela entrevista ao Observador que Henrique Araújo começou o seu discurso, afirmando que as sua críticas ao excesso de garantias de defesa tinha o “enfoque nas sucessivas camadas” de recursos e incidentes “criadas pelo legislador ordinário” que “enredam a tramitação e favorecem o prolongamento da vida do processo”. “Infelizmente, seguindo esse caminho de pródiga concessão de garantias, o legislador veio acentuar e agravar a situação”, afirma, referindo-se a várias alterações previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção que alteram o Código Penal, o Código de Processo Penal e outras leis.

As alterações contestadas explicadas em pormenor

As alterações contestadas pelo presidente do STJ são as seguintes:

  • O regime de impedimentos. O Conselho Superior da Magistratura manifestou a sua oposição mas a Assembleia da República foi em frente e decidiu alargar os impedimentos do juiz, de forma a reforçar a sua independência. Do ponto de vista prático, um juiz de instrução que tome decisões sobre um determinado na fase de inquérito, não poderá decidir sobre o mesmo processo em fase de instrução ou em fase de julgamento.

O problema, na ótica de Henrique Araújo, é que o alargamento vai provocar o “entorpecimento” dos tribunais. E deu exemplos práticos para fundamentar a sua crítica. “A exagerada amplitude desse regime implica” que um juiz de instrução que declare em fase de inquérito que o congelamento ou arresto de determinados bens ou que pratique atos judiciais simples (como admitir a constituição como assistente, a realização de uma perícia ou aplicar a medida de coação de apresentação periódica) fica de imediato impedido de intervir no julgamento. “O mesmo sucede com o juiz que proceda à inquirição de uma testemunha em fase de instrução, que autorize a realização de uma busca domiciliária ou autorize uma interceção telefónica. Excessivo, sem a menor dúvida!”, afirma o conselheiro.

  • Deixa de haver limite de testemunhas. Apesar de existir formalmente um artigo na lei a limitar o número de testemunhas que podem ser ouvidas em audiência de julgamento, muitas vezes os juízes aceitam muitos dos pedidos das defesas, com receio de gerarem nulidades que venham a ser aproveitadas em fase de recuso. Agora, essa norma que limitava número de testemunhas desaparece, segundo o presidente do Supremo. “Não é difícil prever o que aí vem!”, afirma.
  • Recurso ordinário para o Supremo. As alterações aprovadas pelo Parlamento promoveram ainda um alargamento dos recursos ordinários permitidos para o STJ. Assim, segundo o conselheiro, passa a ser possível recorrer de todas as condenações “inovatórias” de um tribunal da relação — e não apenas “nos casos de reversão de absolvição em condenação em pena de prisão efetiva”. O que permitirá, afirma, “o recurso para o Supremo de um acórdão da Relação que condene o arguido, anteriormente absolvido, numa pena de, imagine-se, 10 dias de multa!”
  • Reposição da colegialidade nas decisões dos tribunais de recurso. Por último, Henrique Araújo censurou a alteração que prevê “apenas a intervenção de um juiz adjunto, e sem fazer intervir um segundo adjunto”. Isto porque poderá implicar que o “presidente da secção participe no julgamento de todos os casos.” Ora, tal será “simplesmente incompreensível, além de poder revelar-se humanamente impraticável” e desvirtuar as competências de um presidente de uma secção criminal, afirma o presidente do STJ.

Parafraseando Almeida Santos, ex-presidente da Assembleia da República e ex-ministro da Justiça que considerava, Henrique Araújo não tem dúvidas de que “as repercussões negativas vão começar a sentir-se rapidamente e a censura social dos atrasos nas decisões finais vai recair – como sempre acontece – nos magistrados e nos tribunais.”. 

É por isso que, “apesar de ainda não terem entrado em vigor as alterações contidas na Lei 94/2021, é, portanto, urgentíssimo repensá-las. Se nada se fizer, no imediato, o preço da fatura será muito elevado e, embora esta seja apresentada ao habitual ‘devedor’, quem a terá de pagar serão os cidadãos e a sociedade”, concluiu.