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Entre o baile nas furnas e o jantar com a mordoma do Espírito Santo: nesta ilha serve-se e dança-se Tremor para todos os gostos

Este artigo tem mais de 2 anos

As histórias de Conceição Ivo à mesa, a festa molhada das Cocanha, o psicadelismo sedutor dos L'Eclair. De Rabo de Peixe à Ribeira Grande, mais um dia de descobertas em São Miguel.

Parecia ser uma celebração pagã conduzida pelas percussões e pelo canto polifónico, de origens medievais, aquilo que as Cocanha trouxeram
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Parecia ser uma celebração pagã conduzida pelas percussões e pelo canto polifónico, de origens medievais, aquilo que as Cocanha trouxeram

Vera Marmelo

Parecia ser uma celebração pagã conduzida pelas percussões e pelo canto polifónico, de origens medievais, aquilo que as Cocanha trouxeram

Vera Marmelo

A meteorologia prometia tempestade e as nuvens cinzentas e o vento pareciam querer dar razão às previsões. Mas a chuva foi meiga com o Tremor e só decidiu aparecer já o segundo concerto secreto do festival, o Tremor na Estufa, tinha terminado.

O cenário não podia ser mais inusitado: o tanque central do parque Terra Nostra, nas Furnas. Daquelas águas alaranjadas, cujos benefícios para a saúde são incontáveis, despontaram várias cabecinhas flutuantes para assistir à atuação das Cocanha. Elas, Lila Fraysse e Caroline Dufau, apareceram de roupão posto, numa tenda montada mesmo no sopé da escadaria da Yankee Hall, a casa senhorial mandada construir por Thomas Hickling, o cônsul americano que idealizou o Parque Terra Nostra em 1780. Será que iam entrar na água?, perguntava-se entre os banhistas. Não o fariam elas, mas fariam outras pessoas que, largando a timidez e as roupas na berma do tanque, foram-se entregando progressivamente ao prazer daquelas águas, transformadas em plateia de concerto.

“A nossa música é para bailar”, disseram-nos e o público respondeu ao repto, dançando com movimentos suaves e elegantes de corpo, chapinhando com as mãos na água, em jeito de aplauso e rodopiante com delicadeza. Até os ramos das árvores imponentes, que nos rodeavam, bailaram ao sabor do vento, naquilo que parecia ser uma celebração pagã conduzida pelas percussões e pelo canto polifónico, de origens medievais, que as Cocanha trouxeram da região de Occitânia. “Nós gostamos de contar histórias” e assim o fizeram, embora as palavras tomassem uma forma algo abstrata nos nossos ouvidos, pouco habituados a ouvir a língua occitânia, o território que elas dizem ser de brincadeira para explorar texturas e sonoridades simples e singulares. Quem se quiser juntar a este jogo, terá oportunidade de o fazer amanhã, sábado, no workshop que Lila e Caroline darão na La Bamba, em Ponta Delgada, às 15h.

“A nossa música é para bailar”, disseram-nos e o público respondeu ao repto, dançando com movimentos suaves e elegantes de corpo, chapinhando com as mãos na água

Vera Marmelo

Mas que Tremor é este?

Saímos das águas com a pele purificada, enfiando rapidamente as roupas no corpo para nos pormos a caminho da Ribeira Grande, cidade que recebeu os concertos de quinta-feira do festival. Se a chuva foi complacente durante o Tremor na Estufa, não se poupou de todo durante a viagem, exigindo a ginástica desenfreada dos limpa para-brisas para clarear a visão. O vento ajudou à festa, dando encontrões de quando em vez à nossa carrinha, nada que o Sr. Carlos, motorista pronto e atencioso, não estivesse habituado a domar. Nascido em Ponta Delgada, já lhe passaram muitas tempestades pelas mãos e não seria esta que o iria derrear.

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Na Ribeira Grande, houve quem saísse para se deliciar com um arroz de lapas na Cervejaria Cascata, dica de local. Nós seguimos caminho até Rabo de Peixe, onde Conceição Ivo nos esperava com as suas “Receitas do Baú”. Numa parceria com as associações Vida Açor e Local Food, o Tremor convidou o público do festival a sentar-se à mesa de famílias da vila de Rabo de Peixe, que abriram as portas de casa para mostrar as suas tradições, os seus hábitos, os seus pratos, a sua generosidade abundante.

“Na casa da Conceição há sempre espaço para mais um”, dir-nos-ia a senhora de 65 anos, de cara sorridente e genica de sobra, ao nos receber na sua garagem orgulhosamente decorada com a bandeira do Espírito Santo e a imagem do São João. “Não sabia para o que era, mas como gosto de cozinhar quis experimentar”, conta-nos sobre o convite que a organização do festival lhe lançou a ela e a mais cinco famílias.

No dia anterior tinha sentadas onze pessoas à mesa, “hoje foram 14 e amanhã nove”, todas prendadas com menus diferentes. “Venha quem vier, há de ser bem acolhido. Se for bom de conversar, a gente conversa” e nós lá conversámos horas a fio, digerindo a sopa de bolo na panela, feita com pão local, o polvo assado, a caçoula e o seu “pezinho”, molho bom de ensopar o pão, a morcela e o chouriço fritos com ananás e a malassada, bolo típico frito e polvilhado com açúcar, bebendo um licor de maracujá.

Na parede ia-se projetando um vídeo das festas do Espírito Santo. “É uma festa muito alegre”, conta José Eduardo, filho de Conceição, notoriamente saudoso daqueles foliosos e devotos meses de primavera e de verão que enchem de vida as ruas de Rabo de Peixe. Este ano, à semelhança dos dois anteriores, as festas não se vão realizar. Ninguém as quer celebrar com os constrangimentos da pandemia, explica José, “se é para ser, é para ser”.

Conceição Ivo: “Venha quem vier, há de ser bem acolhido. Se for bom de conversar, a gente conversa”. E nós lá conversámos horas a fio

“Um ano recebemos o Espírito Santo, no outro damos”, prossegue. Em 2018, Conceição Ivo foi a mordoma das festas, responsabilidade que já tinha assumido em 2001 e em 2006. “É uma fé que a gente sente. De criança, já fazia brincadeiras de Espírito Santo em casa. Fui criada assim”, diz-nos, mostrando a coroa de prata da sua família, pousada numa base com a inscrição família onde a vida começa e o amor nunca termina.

Quem tem a honra de acolher o Espírito Santo “tem de organizar tudo”, desde esvaziar um quarto e decorá-lo para receber os crentes da vila, que ali acorrerem durante o ano para deixar ramos de flores e fazerem promessas, preparar o cortejo de dia 24 de junho, data sanjoanina, e dar o jantar pós cortejo, para todas as famílias de Rabo de Peixe. “Esta garagem fica cheia até atrás, eu nem sei quanto leva aquilo”, diz passando os olhos pelo espaço amplo. Nessas ocasiões, o forno começa a carburar às 6h da manhã e improvisam-se cozinhas no quintal de onde saem os pratos típicos da época: assado misto, bacalhau com natas, polvo e filetes.

Antigamente, conta-nos, o Espírito Santo era celebrado à luz das velas, porque não havia eletricidade. Já aconteceu aquela casa presenciar um incêndio, “o meu avô decorou o quarto todo com papel. Ardeu tudo, menos a bandeira do Espírito Santo.” Estamos em casa abençoada, adverte-nos, como se já não tivéssemos sentido isso logo que lá entrámos.

Se o Espírito Santo lhe toca no coração, já o Tremor nem tanto. “Mas diga-me agora, o que é que eu vou fazer ao Tremor? Estas músicas não são do meu tempo”. Tentamos-lhe aguçar a curiosidade com o concerto da Escola de Música de Rabo de Peixe, em parceria com Rodrigo Amado e Peter Evans, “venha a Ponta Delgada no sábado”, mas Conceição não se deixou convencer. “Mas que raio de Tremor é este?”, lembra da primeira vez que ouviu falar do festival. Acha muito bem que o mesmo aconteça e, se para o ano se voltar a repetir o “Receitas do Baú”, ela cá estará para receber novos comensais.

O marido, se fosse vivo – “não vou falar mal que ele está no seu descanso e deixou-me uma casa para não me chover na cabeça” – provavelmente reprovaria a ideia. Mas ela, Conceição, que antes se via como “mobília da casa”, hoje sente-se mais viva do que nunca. “Fiquei viúva aos 55 anos e comecei a viver a vida.” Tirou a carta aos 57 anos e tem o seu namorado, como gosta de chamar ao seu carro, estacionado lá fora. É com ele que vai dar as suas voltas pela ilha, quando bem lhe apetece, sempre com a graça do Espírito Santo.

A rave dos L’Eclair no mercado de Ribeira Grande

Embora Conceição e a amiga Glória nos tivessem acompanhado no banco de trás, quem nos conduziu de volta a Ribeira Grande foi Mónica Laranja que, por estes dias, tem ajudado a sua querida vizinha nos cozinhados do Tremor. Pelo caminho, Mónia pergunta-nos, “então o que acharam de Rabo de Peixe?”. Nada que se pudesse aproximar à ideia de vila perigosa que muitas vezes se ouve das bocas e da ignorância dos continentais. “Vivo cá há 27 anos e nunca vi um tiro. As pessoas têm uma ideia errada de Rabo de Peixe”. Se há coisa que o Tremor conseguiu fazer, foi desconstruir essa ideia, e isso não é coisa pouca.

Que o diga André, com quem partilhámos a refeição em casa de Conceição e que, sendo natural de São Miguel, não falhou uma única edição do festival. “O que têm feito com o festival é uma proeza”, diz, destacando a vertente inclusiva e a interação com o território. Não obstante, entrepõe Ana Monteiro, outra parceira de mesa e também visita assídua do Tremor, há quem ainda veja o festival como muito alternativo e elitista. A perceção tem mudado, nota, referindo que nem sempre é um processo fácil. Afinal, “qualquer coisa que fure o esquema e que te faça pensar cria sempre uma resistência. Mas as diferenças entre a cultura elitista e popular estão-se a esbater”.

Numa viagem absolutamente psicadélica, praticamente sem pausas entre os longos temas, os L'Eclair foram navegando por uma sonoridade fluída entre a eletrónica, o funk, o afro-disco e o jazz (fotos de Verma Marmelo e Inês Subtil)

Mesmo assim, não conseguimos convencer Conceição Ivo a juntar-se a nós nos concertos da Ribeira Grande. Não será este ano que vai bailar ao Tremor, mas já esteve mais longe. “Ora dê cá um abraço”, lança-se para nós e assim selamos o nosso adeus. “Nada acontece por acaso”, deixa no ar e não temos por que não crer nisso, como também não temos por que não crer que, uma vez no Mercado Municipal, Conceição não seria capaz de resistir à grande festa que os L’Eclair proporcionaram.

Se um dos encantos do Tremor é conhecer projetos que ainda se estão a definir, bandas que desafiam as fronteiras entre a música e outras linguagens artísticas num processo exploratório que toma o público como parte dessa formação de identidade, também é verdade que o festival nos consegue surpreender com nomes que já apresentam uma grande maturidade e solidez.

Desse leque, fazem claramente parte os L’Eclair, grupo formado na Suíça que, no baixo, teclado, guitarra, bateria e percussões, deram a atuação mais robusta do Tremor, até agora. Numa viagem absolutamente psicadélica, praticamente sem pausas entre os longos temas, foram navegando por uma sonoridade fluída entre a eletrónica, o funk, o afro-disco e o jazz, deixando espaço para a improvisação e para loops que nos acertavam em cheio nos corpos, já completamente indomáveis. Olhava-se para eles e via-se que se estavam a divertir à grande. Que mais pedir de uma banda ao vivo?

O dia ficou igualmente marcado pelas atuações de Maria Reis – houve quem nos tivesse jurado que ela, em palco com a irmã Júlia Reis, seu braço direito nas Pega Monstro, deu uma atuação muito bonita – pela performance da artista turca radicada no Porto, Ece Canli, ao lado da ativista e produtora trans Odete, e pela estreia nos palcos dos Victoria, banda agenciada pela editora micaelense Marca Pistola. Hoje o dia é de Lyra Pramuk (20h15), da Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM), que se junta ao coletivo ondamarela e ao Coral de São José, o mais antigo coro do arquipélago, para aquela que se antevê como uma das atuações mais emotivas do festival (21h30), dos We Sea, banda habitué do Tremor (23h), e de MADMADMAD, que prometem libertação através da dança (23h59). Aqui estaremos para o comprovar.

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