Um estudo académico desenvolvido por um professor português e outro brasileiro demonstra que “as grandes potências conseguem coagir países mais fracos a seguir as suas posições” na Assembleia-Geral das Nações Unidas (AGNU), disseram à Lusa os autores.

A dinâmica de votação na AGNU entre 2009 e 2019, incluindo a compra de patrocínio de resoluções por parte dos países mais poderosos é o foco do estudo de Pedro Seabra, investigador no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-Iscte) e professor auxiliar convidado do Iscte-IUL, juntamente com Rafael Mesquita, professor assistente no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Brasil.

Em entrevista à Lusa, os investigadores, cujo estudo foi publicado no jornal académico “International Studies Quarterly”, indicaram que o ponto de partida derivou de uma constatação partilhada de que uma parte considerável da literatura académica tratava os resultados de votações de resoluções na AGNU como a fonte mais fiável para se extrair padrões de comportamento interestatal a nível internacional, o que, na visão de ambos, é excessivamente redutor.

“Por um lado, a maior parte da produção da AGNU nunca chega sequer a ir a votos, e aquela parcela que é de facto votada acaba por se concentrar desproporcionalmente em tópicos mais polémicos, o que deturpa o nosso entendimento sobre aquilo que se passa nos bastidores deste tipo de organizações”, disse Pedro Seabra.

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Por outro lado, e quiçá mais importante, focarmo-nos apenas em votos significa ignorarmos todo o processo longo e complexo do ponto de vista legislativo que se desenrola para cada uma das resoluções que é submetida. O facto de cada Estado-membro poder interagir, interferir ou até mesmo mudar de posição algures antes do momento que precede o registo público do seu voto, abre um sem-número de possibilidades”, acrescentou o investigador português.

Nesse sentido, os docentes desenvolveram dois novos índices empíricos — prioridade e propriedade –, a fim de verificar a relevância de cada projeto para cada Estado-membro. Também usaram os novos dados para testar argumentos de longa data sobre compra de votos e coligações do Norte “versus” Sul na AGNU.

“As nossas descobertas confirmam as principais conclusões para o primeiro [compra de votos], mas desafiam as suposições predominantes sobre o último [Norte “versus” Sul]”, diz o estudo.

Para Pedro Seabra, um resultado particularmente interessante diz respeito a conhecimentos anteriores sobre os blocos de países que se formam na AGNU.

“Se fôssemos apenas considerar os resultados das votações, seríamos tentados a acreditar que existe, grosso modo, uma divisão genérica entre o Norte desenvolvido e o Sul em desenvolvimento, face aquilo que é levado a votos todos os anos”, afirmou Seabra.

No entanto, “se focarmos a nossa atenção nas diferentes fases do processo de elaboração de uma resolução, conseguimos chegar a um conjunto de agrupamentos de países que se têm consolidado nos últimos tempos e que possuem maior validade externa enquanto unidades coesas na hora de atribuírem o seu nome a um determinado projeto. Isto mostra-nos que a política internacional, enquanto refletida na AGNU, é afinal mais complexa e menos previsível ou estática do que aquilo que poderíamos pensar à partida”, advogou.

Em relação às conclusões sobre a compra de votos, Rafael Mesquita frisou que este é um tema já bastante abordado e que diversos estudos já exploraram anteriormente o facto de países que recebem, por exemplo, Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD) ou outros tipos de financiamento, tenderem a votar na AGNU em alinhamento com os países que proporcionam esse apoio.

Contudo, este estudo vai mais longe, na medida em que procura sinais dessa influência em todas as propostas de resolução – inclusive aquelas que não são postas a voto — e a cada momento do processo de “drafting” (redação).

“Isto é: verificamos se o apoio, por exemplo, dos Estados Unidos da América (EUA) ao primeiro rascunho de uma proposta faz com que países recetores de AOD norte-americano sejam mais propensos a endossar uma versão subsequente do documento. Testamos essa proposição para os EUA, a França, o Reino Unido e a China”, explicou o brasileiro.

“Em alguns casos, conseguimos mostrar sinais de alinhamento claro. Por exemplo, quando os EUA endossam primeiro um rascunho, os membros da NATO e com alta dependência comercial ou de AOD tendem a seguir de imediato. No caso da França e do Reino Unido, essa influência só se verifica entre membros da União Europeia e com alta dependência comercial”, detalhou Mesquita.

Já no caso da China, os investigadores encontraram algum efeito em casos de dependência comercial e de distribuição de AOD, porém menos nítido do que nos restantes.

“A nossa conclusão é que existe de facto uma correlação significativa entre dependência bilateral e o “seguidismo” relativamente a essas potências em arenas multilaterais como a AGNU”, sublinhou Rafael Mesquita, acrescentando que a análise que desenvolveram da compra de patrocínio “comprova que grandes potências conseguem coagir países mais fracos de forma a que eles sigam as suas posições”.