Falar dos anos 20 do século XX em Portugal, mais precisamente em Lisboa, é falar antes de mais de uma experiência de Modernidade naquele sentido em que a definiu Charles Baudelaire, “retirar o poético do histórico, extrair o eterno do transitório (…) extrair a beleza misteriosa” de uma época, “captar o fugidio, o transitório, o contingente”. Ora mais do que impor a narrativa repetitiva dos “loucos anos 20” como ele aconteceram em Nova Iorque, Paris ou Berlim e que foi fixada do famoso romance de Scott Fitzgerald, The Great Gatsby, com a meninas em “flipper dress”, cabelos “à la garçonne”, muitas festas, champanhe, pernas a dançarem Charleston e música jazz nos bares do Harlem, a exposição “Os Loucos anos 20 em Lisboa” é um trabalho meritório de pesquisa histórica, social e artística sobre como foi efetivamente vivida essa década na capital portuguesa.
Sem ignorar todas as influências vindas dessas capitais europeias e Norte-americanas, a exposição que abre esta sexta-feira, 22 de abril, ao público, no Museu de Lisboa/Palácio Pimenta, leva-nos numa viagem culta, corajosa e bem-humorada por um tempo de grandes transformações sociais, morais, identitárias, artísticas, económicas, mediáticas, que foram provavelmente o tempo em que uma “liberdade livre”, na aceção do poeta Rimbaud, fez a sua aparição na cultura deste país periférico, católico, iminentemente rural e machista.
Um dos aspetos inovadores e corajosos desta exposição é que ela vai olhar com uma atenção pouco comum para as mulheres, os negros, os homossexuais, os artistas de vanguarda, que tiveram, nestes anos, uma breve abertura para construirem novas identidades, em grande medida alavancadas pelo consumo, a publicidade, a moda, o culto do ócio, a evolução tecnológica.
A exposição, comissariada por Cecília Vaz, Mário Nascimento e Paulo Almeida Fernandes, procura sobretudo mostrar como, numa cidade ainda sem iluminação elétrica, onde nas estradas circulavam ao mesmo tempo elétricos, automóveis e burros; num pais que queria promover-se turisticamente e mais não tinha do que estradas alcatroadas; onde o fado e o marialvismo estavam (e estão) entranhados na Cultura; como neste cenário puderam nascer clubes noturnos referidos em revistas internacionais (como o Bristol), uma elite que ia a Paris ao cabaret da bailarina Josephine Baker, mulheres que tiravam o Brevé para pilotar aviões (como o caso da sufragista Maria de Lourdes Brás Teixeira), mulheres que fumavam, que tanto vestiam calças e fatos masculinos, como vestidos vertiginosamente decotados, performances de dança com raparigas semi-nuas e se consumia, mais ou menos abertamente, cocaína, morfina e outros opioides.
Dir-se-ia que havia duas cidades: a cidade diurna onde as donas de casa sonhavam com os novos eletrodomésticos promovidos por uma publicidade crescente, olhavam nas montras as modelos magras, andróginas e longilíneas, parcamente vestidas e depois viam ao espelho o seu corpo típico de mulher latina: baixa, roliça, de coxa grossa, que tinham que pedir autorização ao marido ou ao pai para poderem cortar os cabelos, e uma carteira que não lhes permitia aceder àquele estilo de vida, mas tão só sonhá-lo. O trânsito caótico ainda se fazia pela esquerda sobre a calçada portuguesa, a falta de habitação era, tal como hoje, um dos grandes problemas sociais da capital. E também, tal como hoje, uma das promessas constantes da 1ª República e depois do Estado Novo, enquanto os bairros miseráveis iam engrossando as periferias da cidade, o que só se veio a resolver nos idos dos anos 80 e 90.
E depois, havia uma Lisboa noturna, com bares que eram também dancings e casinos, que tinham mesas de jogo e roletas (apesar de, nesta época, aos jogos se poder aplicar aquela célebre frase “é proibido mas pode fazer-se”, pois a legislação era equívoca e os casinos multiplicavam-se, apesar das ocasionais visitas da polícia). Essa Lisboa boémia, de bares como o Bristol, o Maxim’s no Palácio Foz ou o Magestic Club, no Palácio Alverca, com os seus artistas modernistas, influenciados pelas vanguardas internacionais , a Art Déco, a Bauhaus, o De Stijl.
O momento dedicado a escritores, jornalistas, coristas, cocottes, atrizes, cinemas e teatros é um dos núcleos mais interessantes desta mostra. Nessas noites de jogos de fortuna e azar, cruzamo-nos com figuras que materializaram essa modernidade, como Reinaldo Ferreira, o famoso Repórter X, António Ferro, Cândido de Oliveira, Raul Lino, Emmérico Nunes, Mário Domingos, Carlos Barradas, António Soares, Almada Negreiros, Raul Leal, António Botto, Judith Teixeira, Veva de Lima ou Luísa Cabral Pinto Barreiros, duas beldades ricas e excêntricas, que tanto podiam ser vistas a jantar em Paris como em Lisboa.
Tudo isto numa metrópole que, nessa década, viu a sua demografia crescer 22%, mas também um forte desenvolvimento tecnológico e comercial que abriu, de facto, a possibilidade de novos estilos de vida. Sempre num exercício de escavar e mostrar o que é que fez d'”Os Loucos Anos 20″ uma experiência em Lisboa, absolutamente singular, face às suas congéneres europeias mais desenvolvidas e glamourosas, os comissários optaram por dar destaque à chegada em força do cinema, não só americano, mas também europeu. Recorde-se que o Tivoli, da autoria de Raul Lino, na Avenida da Liberdade, foi o primeiro imóvel feito de raiz para ser um cinema e estreou-se com a projeção, não por acaso, do filme “Metropolis” do expressionista alemão Fritz Lang, que também, não por acaso foi um fracasso de bilheteira. Foi também aqui que passou pela primeira vez o “Nosferatu”, de F.W Murnau, outro expressionista alemão. O cinema europeu era um dos emblemas desta sala.
E logo ali a dois passos o Parque Mayer, afirmava-se, como um espaço curioso de democratização da cultura e do ócio, aliando os teatros, a revista e as festas mais tradicionais de índole rural. Ali era o lugar onde se misturavam todas as classes sociais, um carnaval que não ficou incólume ao modernismo, até porque a modernidade não é senão o reverso da tradição.
Outra das curiosidades que pode ser vista na mostra é uma espaço dedicado à industria automóvel, que foi nestes anos também um setor que, numa deliciosa mistura, se aliava à arte e concretizava mais uma conquista feminina: a condução de carros. Os stands eram edifícios projetados pelos mais famosos arquitetos, como serviam de galerias de arte onde os mais jovens artistas plásticos modernistas podiam expor as suas peças e quadros.
Todos os seis núcleos da exposição são pontuados pela exibição de excertos de filmes nacionais e internacionais que mostram a nova vida das cidades Ocidentais na década de 20, ainda no rescaldo da 1ª Guerra Mundial. Os filmes são introduzem também momentos de ironia e humor nesta exibição, como “Fátima Milagrosa”, um filme de Rino Lupo, que mostra a conversão de um desbragado playboy ao catolicismo, por via das rezas da namorada a Nossa Senhora de Fátima.
Em 1928, com a ditadura militar e depois com o Estado Novo, toda esta modernidade vai sofrer um grande retrocesso. As palavras de ordem passam a ser trabalho, religião e família, a mulher volta a ser relegada à esfera doméstica e há todo um amplexo de liberdade que se fecha. É, pois, com uma vista aérea sobre uma cidade agora a preto e branco que nos despedimos dos anos 20.
Compreender o carácter, a beleza e a textura da vida humana na Modernidade, como escreve Baudelaire, na sua ode ao gravurista Constantine Guys, no livro O Pintor da Vida Moderna (editora Nova Vega), é ter “a memória e os olhos cheios” de passado e de presente. Nesse sentido, esta é uma exposição absolutamente conseguida, pois permite ao visitante fazer pontes e ligações entre o passado e a atualidade.
A exposição “Os Loucos anos 20 em Lisboa” abre ao público dia 22 e fica patente até dia 11 de dezembro no Palácio Pimenta, no Campo Grande em Lisboa. De terça a domingo, entre as 10 e a s 18 horas. Tem ainda uma programação de visitas para famílias e escolas