Os fãs de futebol reconhecerão o nome da região separatista da Moldávia que o general russo Rustam Minnekayev, comandante-adjunto do Distrito Militar Central da Rússia, anunciou esta sexta-feira estar nos planos próximos de invasão do Kremlin, alegadamente graças à existência de “provas” de opressão da população russófona no local.
O Sheriff, que em setembro do ano passado ganhou ao Real Madrid em pleno Santiago Bernabéu e saltou para o primeiro lugar do grupo da Liga dos Campeões (onde depois não se manteve, acabando por baixar à Liga Europa e a ser eliminado nada menos do que pelo Sporting de Braga), é de Tiraspol, a capital da Transnístria, a república socialista que em 1990 declarou a independência da Moldávia e se constituiu como um Estado de facto.
O que significa que tem direito a hino, legislação, parlamento, presidente, governo, polícia, forças armadas, banco central e até moeda própria, o rublo transnístrio (que se subdivide em 100 copeques, que na forma moeda podem ser de metal ou de plástico; só é aceite dentro das próprias fronteiras, e vale 18,4 euros), mas não ao reconhecimento por parte de um único membro das Nações Unidas.
Em 32 anos de existência, só as igualmente disputadas e autoproclamadas repúblicas da Abecásia, da Ossétia do Sul e de Nagorno-Karabakh reconheceram o território, cujo nome oficial é ainda mais difícil de dizer: República Moldava Peridniestriana. Nem a Rússia, que em 1992 patrocinou militarmente a guerra da Transnístria contra a Moldávia e desde então se manteve no território em “conflito congelado”, onde em março teria cerca de um milhar de soldados estacionados, a reconhece como país.
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O Sheriff além da Liga dos Campeões e do futebol
Para todos os que não seguem a Liga dos Campeões (e para os que seguem, mas não vão para lá das quatro linhas), eis tudo aquilo que tem de saber sobre este que é considerado o último bastião soviético do mundo, tem uma bandeira com a foice e o martelo e estátuas de Lenine espalhadas pelos pouco mais de quatro mil quilómetros quadrados do seu território, que faz fronteira com a própria Moldávia, a este do rio Dniestre, e, a leste, com a Ucrânia.
A começar pelo Sheriff, que este ano fez sensação na Europa e em 25 anos de existência foi campeão da Moldávia 19 vezes, as últimas seis de forma consecutiva: mais do que um clube de futebol, é uma empresa, com o mesmo nome, que domina praticamente todos os setores da economia local — tem uma cadeia de bombas de gasolina, outra de supermercados, um banco, um canal de televisão, uma editora, uma agência de publicidade, uma empresa de construção, um concessionário da Mercedes-Benz, uma fábrica de bebidas espirituosas, duas fábricas de pão e uma rede de telemóveis.
Criada por um trio composto por dois antigos agentes do KGB, Viktor Gușan e Ilya Kazmaly, e um general reformado do Exército Vermelho, Nikolai Goncharenko, conhecido por ser dono de um jardim zoológico privado e de uma anaconda (que tinha por hábito deixar livre em casa) a Sheriff tem sido repetidamente acusada de corrupção, graças às relações de proximidade que, desde a primeira hora, tem mantido com o governo.
No fundo, a empresa monopolista é um espelho da própria auto-proclamada república, que o think tank americano Carnegie Endowment for International Peace descreveu em 2018 como um “refúgio para contrabandistas”. “Uma das razões por que a Sheriff existe para lá de qualquer discurso sobre corrupção é o facto de a corrupção se ter infiltrado no que resta do contrato social e ser aceite como um facto da vida na República Moldava Peridniestriana”, já tinha observado, seis anos antes, Michael Bobick, um estudante da Universidade de Cornell numa apresentação que fez justamente sobre a empresa, na Universidade de Miami. “Isto divide implicitamente aqueles que beneficiam da corrupção daqueles que simplesmente lidam com ela.”
Quatro meses de guerra civil e um cessar-fogo assinado por Yeltsin
Quando no dia 27 de agosto de 1991, quatro meses antes do fim da URSS, a Moldávia proclamou a independência, a Transnístria já tinha sido fundada, graças a parte dos seus habitantes, de origem russa e falantes de russo, que não se reviam no resto do país e não queriam a secessão da União Soviética — até 1940, ano em que foi integrada na união, a região pertencia à Roménia.
Para que não fiquem dúvidas, 2 de setembro de 1990 foi o dia oficial da Declaração da Formação da República Socialista Soviética Moldava Peridniestriana, que mais tarde, com o colapso da república-mãe, acabou por abreviar o nome.
A separação não foi pacífica e só não terá acabado de outra forma graças ao apoio que a estreita faixa de terra acabada de tornar independente recebeu por parte de mercenários cossacos e soldados russos. A guerra civil, que começou um dia depois de milícias pró-russas transnístrias terem atacado uma esquadra de polícia em Dubasari, cidade entretanto reclamada à Moldávia, durou pouco mais de quatro meses e acabou “congelada”, em julho de 1992, com Boris Yeltsin a assinar o acordo de cessar-fogo a par do Presidente moldavo e a Transnístria a assumir-se como país de facto. Que, apesar de todas as ligações, também não é reconhecido pela Rússia.
Atualmente, serão cerca de 500 mil os habitantes da Transnítria, que tem três idiomas oficiais — russo, moldavo e ucraniano — e é descrita por várias fontes como o último reduto da URSS, nos símbolos e estátuas que continua a ostentar, na arquitetura estalinista que continua a ser dominante, e na tinta cinzento-soviete que continua a cobrir a maior parte dos edifícios.
De resto, tudo na auto-proclamada república grita Rússia, com os retratos de Vladimir Putin a serem mais fáceis de encontrar nas paredes do que os do seu próprio presidente, escreveu em 2016 a Wired, explicando que, “em troca”, o Kremlin fornece gás gratuito ao enclave e complementa ainda as pensões dos seus residentes.
Tudo isto fez com que o anúncio feito esta sexta-feira pelo general Rustam Minnekayev, de uma potencial invasão russa da Transnístria, tenha causado estranheza, mas a verdade é que, salientou o site BalkanInsight, poucos dias após o início da guerra na Ucrânia, o enclave não apenas mantém relações próximas também com a Ucrânia, como nunca chegou a reconhecer sequer as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk.
Mais: um dia depois de a invasão russa da Ucrânia ter começado, o Presidente Vadim Krasnoselsky emitiu um comunicado a garantir que a situação na Transnístria permanecia estável e a garantir aos cidadãos que o estado de emergência não seria implementado. E não condenou nem apoiou a invasão.
O objetivo da Rússia nesta a que chama a segunda fase da invasão é abrir um corredor terrestre até à Crimeia e controlar totalmente não apenas o Donbass mas também o sul da Ucrânia, daí as investidas contra Odessa e Mariupol. “O controlo do sul da Ucrânia é outro caminho para a Transnístria, onde também há indícios de que a população russófona está a ser oprimida”, disse esta sexta-feira Rustam Minnekayev. Foi exatamente com esse argumento, mas aplicado às repúblicas separatistas da Ucrânia, que há 58 dias a Rússia deu início à invasão daquele país.