Em janeiro, Roger Schmidt visitou a VDL Nedcar, uma fábrica automóvel que é um dos principais patrocinadores do PSV. O treinador observou o processo de composição das diferenças peças com atenção, percorreu as instalações e mostrou-se sempre muito interessado em todos os passos — afinal, antes de se dedicar por inteiro ao futebol, foi engenheiro mecânico. A dada altura, o CEO da VDL Nedcar perguntou-lhe se gostaria de ter jogadores assim, autênticos robôs, precisos e exímios, que não cometessem erros. E Schmidt respondeu depressa: “Não. Os jogadores de futebol precisam de ter criatividade.”
Dificilmente existe uma história melhor e mais oportuna para explicar a forma como pensa Roger Schmidt, o ainda treinador do PSV que tem já um princípio de acordo assinado com o Benfica para orientar os encarnados a partir da próxima temporada. Nascido em Kierspe, uma localidade com pouco mais de 16 mil habitantes perto de Colónia, na Alemanha, o técnico de 55 anos é uma vítima do próprio sucesso — afinal, trabalhar no futebol ao mais alto nível nunca foi propriamente um plano.
“Nunca quis ser treinador de futebol. Era um hobby, no início”, explicou ao The Guardian há alguns anos. Depois de uma carreira para lá de discreta enquanto jogador, passada essencialmente nas ligas regionais e semi-profissionais da Alemanha, Roger Schmidt começou a treinar no Delbrücker SC em 2004, função que acumulava com a profissão de engenheiro mecânico. O convite do Preußen Münster, três anos depois, levou-o a tomar a decisão de se dedicar por inteiro ao futebol — em 2011 estava a assinar pelo Paderborn e em 2012, depois da saída de Ricardo Moniz, assumiu o comando técnico do RB Salzburgo da Áustria.
Foi campeão austríaco e conquistou uma Taça, feitos que lhe garantiram o salto para o Bayer Leverkusen e para a Bundesliga. Ficou no quarto lugar na primeira época, em terceiro na segunda e não terminou a terceira, acabando despedido depois de uma goleada sofrida contra o Borussia Dortmund de Thomas Tuchel. Foi associado ao Ajax, à seleção dos Países Baixos e até à eventual sucessão de Pep Guardiola no Bayern Munique mas acabou por surpreender e mudar-se para a China para orientar o Beijing Guoan, onde ganhou uma Taça depois de vários anos de seca. Foi despedido em julho de 2019 mas não sem ser brindado com uma despedida emocionada no aeroporto de Pequim, com milhares de adeptos a deslocarem-se para se despedirem pessoalmente do treinador.
Em março de 2020, Roger Schmidt voltou à Europa e aceitou o desafio do PSV. Ganhou a Supertaça em agosto do ano passado e, já neste mês de abril, venceu a Taça dos Países Baixos, estando ainda a lutar pela conquista do título a quatro pontos da liderança do Ajax. Depois de não chegar a acordo com o clube neerlandês para renovar o vínculo que termina no fim da temporada, o treinador alemão vai mudar-se para Portugal e encabeçar o novo projeto do Benfica — levando na bagagem, essencialmente, três fatores distintivos que podem mudar muita coisa na Luz.
Um “futebol extremo” que não se preocupa com sofrer se conseguir marcar mais
A filosofia de Roger Schmidt pode ser resumida num cliché muitas vezes usado no futebol: não interessa quantos golos se sofrem desde que se marquem mais. Filho pródigo de uma tradição alemã e neerlandesa que se preocupa mais com o ataque do que com a defesa, o treinador é apologista de uma linha defensiva muito subida, do recurso à pressão alta e à provocação do erro do adversário e da intensidade em todas as dinâmicas e movimentações.
“Ficamos felizes quando o jogo é intenso. Mesmo quando jogamos contra equipas que são supostamente melhores do que nós, tentamos fazer com que joguem o nosso futebol. É essa a nossa exigência aos nossos adversários. Normalmente, se resultar, ganhamos o jogo. Jogamos futebol intenso. Um dos nossos pontos principais é uma boa organização quando não temos a bola. Tentamos recuperar a bola muito à frente, muito perto da baliza do adversário. Tentamos ser muito rápidos nessa abordagem e depois fazer a transição ofensiva”, explicou o treinador há alguns anos, em entrevista ao The Independent, quando ainda orientava o Bayer Leverkusen.
PSV, de Roger Schmidt, conquista Taça dos Países Baixos ao bater Ajax na final
As ideias de Roger Schmidt cimentaram-se essencialmente no RB Salzburgo, há praticamente uma década, quando se cruzou com Ralf Rangnick. O agora treinador do Manchester United, que na altura era diretor desportivo dos austríacos, partilhava com o alemão não só a nacionalidade como também a paixão pelo futebol ofensivo e quase kamikaze, algo que facilitou o trabalho em conjunto ao logo de dois anos. “No final, nasceu um futebol ainda mais extremo do que aquele que o Ralf tinha implementado nos tempos do Hoffenheim”, recordou Schmidt em entrevista ao The Guardian.
A verdade é que o próximo treinador do Benfica foi o primeiro nome de uma autêntica incubadora de técnicos. Depois de entender que o futuro não passava por nomes pesados e tradicionais como Giovanni Trapattoni ou Co Adriaanse, o RB Salzburgo apostou em Roger Schmidt e pegou no exemplo do alemão para criar uma autêntica dinastia de profissionais que atualmente fazem parte do grupo dos treinadores mais entusiasmantes da Europa. Adi Hütter, agora no Borussia Mönchengladbach, Óscar García, do Stade de Reims, Marco Rose, do Borussia Dortmund, ou Jesse Marsch, do Leeds, são alguns dos técnicos mais recentes do clube austríaco, algo que deixa claro e evidente o autêntico trampolim em que o RB Salzburgo se tornou.
No Benfica, Schmidt irá procurar prolongar esta filosofia — e poderá fazê-lo com a ajuda de alguns eventuais reforços cujos nomes já vão circulando. David Neres, avançado brasileiro que passou pelo Ajax e que está atualmente no Shakhtar Donetsk, poderá ser o primeiro jogador contratado pelos encarnados já com o aval do novo treinador e parece encaixar como uma luva na forma como as equipas do alemão costumam comportar-se. Com Schmidt, o Benfica poderá renunciar à habitual lógica mais portuguesa e comedida, a assentar na organização defensiva enquanto base para a resposta ofensiva, e tornar-se uma força disruptiva dentro da Primeira Liga.
Uma aposta nos jovens que tem Havertz como exemplo paradigmático
Mais do que uma ideia nova, Roger Schmidt pode trazer ao Benfica uma autêntica evolução na continuidade para a ideia que já é a palavra de ordem nos encarnados: a aposta na formação. “O perfil de treinador que o Benfica procura enquadra-se com ele também através do projeto do Seixal, que quer lançar pérolas para a equipa principal. O Roger Schmidt é um treinador que tem lançado jovens na equipa principal, basta olharmos para o PSV… Até a titulares, sem qualquer problema. O que ele vê, acima de tudo, é a qualidade do jogador e não o BI. Se o jogador tem 18 anos ou mais experiência, não interessa. Só interessa o rendimento que mostra no momento. A visão do Benfica encaixa na visão dele”, explicou Rui Mota, treinador português que foi adjunto da seleção chinesa e privou com Schmidt enquanto este esteve em Pequim, ao zerozero.
Já lá vai a vingança (será?), mas cuidado que este PSV vem bem lançado para defrontar o Benfica
O percurso do treinador alemão não engana. No RB Salzburgo, apostou em Martin Hinteregger, agora no Eintracht Frankfurt, e num jovem Sadio Mané, acabado de chegar do Metz — e em Valentino Lázaro, que não deve reencontrar na Luz, já que o empréstimo do Inter Milão só é válido até ao final da temporada. No Bayer Leverkusen, para além de ter moldado e fortalecido o potencial de Son Heung-min, lançou Julian Brandt e Kai Havertz, sendo que este último acabou por render um encaixe de 80 milhões de euros aos alemães quando assinou pelo Chelsea há dois anos. No PSV, a lógica prolongou-se: Sangaré, Ledezma, Madueke e Gakpo, essencialmente, foram apostas pessoais de Roger Schmidt e são agora parte integrante do plantel principal.
No Benfica, acidentalmente (ou não), o treinador alemão vai cruzar-se com uma jovem geração que acabou de conquistar a Youth League com uma goleada imperial contra o RB Salzburgo na final de Nyon. Henrique Araújo, Martim Neto e Diego Moreira são o trio onde assentam as esperanças encarnadas no que toca ao futuro e Schmidt, por esta altura, já saberá que alguns dos reforços para a próxima temporada podem aparecer precisamente nos juniores em particular e no Seixal no geral. A academia encarnada, que nos últimos anos lançou nomes como João Félix, Rúben Dias, Bernardo Silva ou João Cancelo, terá mesmo sido um dos pontos cruciais para a decisão do treinador alemão — e para a escolha portuguesa.
Uma exigência física e exibicional que obriga a jogos de oito segundos nos treinos
Roger Schmidt traz consigo uma forma de pensar que encaixa com os pedidos dos adeptos do Benfica: ganhar não é suficiente, é preciso jogar bem. Para o treinador alemão, a lealdade e fidelidade ao sistema tático implementado, à estratégia adotada e à intensidade assumida são tão valiosas quanto as vitórias e os pontos conquistados e é necessário ter claro de que dificilmente se atingem os resultados pretendidos se a equipa se descaracterizar.
“A forma como jogamos é um enorme boost para a nossa confiança. Para nós, para além de ganhar, também é muito importante a forma como ganhamos”, disse o técnico na tal entrevista ao The Guardian. Esta obsessão com o nível exibicional e a qualidade demonstrada em campo tem eco no treino e na preparação, onde Roger Schmidt é muito exigente com o trabalho dos jogadores e com a capacidade física que cada um demonstra. Entre sessões muito intensas, exercícios de pressão alta e jogos de oito segundos, o treinador alemão não permite grandes descuidos nem dias de menor dedicação.
“Neste estilo, com muita pressão, os jogadores têm de fazer muitos sprints. Por isso é que os meus jogadores têm de estar muito bem fisicamente, porque precisam de ter a capacidade de fazer muitos sprints curtos durante o jogo. Se queremos pressionar, queremos ganhar a bola. E se queremos ganhar a bola, temos de o fazer a alta velocidade. É mais fácil ganhar a bola se formos muito rápidos”, atirou o técnico ao The Independent, oferecendo o exemplo de Son Heung-min precisamente para explicar que o sul-coreano teve uma adaptação simples à intensidade da Premier League porque estava habituado a essa exigência no Bayer Leverkusen.
Para Rui Mota, aliás, esse profissionalismo de Roger Schmidt tem tudo para conquistar os adeptos do Benfica. “Para o público da Luz, sobretudo pela exigência que tem e pelo futebol praticado nos últimos anos, não chega apenas ganhar. Querem que a equipa tenha uma exibição vistosa, agradável e a vencer por mais do que um golo. A exigência passa por aí. Claro que ele pode fazer adaptações, até por aquilo que vai encontrar no futebol português, mas as equipas dele, como se tem visto no PSV, são sempre direcionadas para o ataque, com jogadores com uma elevada capacidade ofensiva e desequilibradora”, concluiu o técnico português.