Este artigo foi originalmente publicado a 29 de abril de 2022.

Yuri Orlov. Assim se chamava o traficante de armas interpretado em 2005 no cinema por Nicolas Cage, um personagem obscuro com fortuna e reputação assentes numa tríade composta pelo fim da guerra fria, o colapso da União Soviética e o surgimento de grupos terroristas em todo o mundo. Apesar de não partilhar com Viktor Bout nem o nome nem o característico bigode, é sabido que foi nele, o verdadeiro “Mercador da Morte”, que Andrew Niccol se inspirou para fazer “O Senhor da Guerra”. Esta quinta-feira, Bout — que já tinha cumprido 10 anos de uma pena de 25 de prisão — foi ‘devolvido’ à Rússia, como moeda de troca para a entrega aos EUA da basquetebolista Brittney Griner, de 32 anos, detida desde fevereiro por alegada posse de droga.

E demorou pouco até Viktor Bout tomar alguma decisão com, no mínimo, uma forte posição política. Menos de uma semana depois de ter sido libertado pelos Estados Unidos, Bout, conhecido como ‘Mercador da Morte’, já se terá somado às fileiras do Partido Liberal Democrático, o partido ultranacionalista leal ao Kremlin que exige à Rússia que conquiste os países da antiga União Soviética.

Na altura em que Cage interpretou o papel de Yuri Orlov, o que o argumentista e realizador não sabia era como a história acabava (ou continuava, pelo menos). Três anos depois da estreia do filme em Hollywood, o verdadeiro Viktor Bout foi preso na Tailândia, numa operação com agentes infiltrados da americana DEA (a polícia da droga), e acusado de conspirar para vender armas aos rebeldes das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), que poderiam mais tarde ser usadas contra alvos americanos. A saber: cerca de 800 mísseis terra-ar, 5 mil metralhadoras AK-47 e um número indeterminado de explosivos C4 e minas antipessoais.

Extraditado em 2010 para os Estados Unidos, o mais famoso traficante de armas do mundo foi condenado a 25 anos de prisão. Cumpridos 12 e com pelo menos uma uma exposição de arte atrás das grades no currículo — uma “prova” de que ainda “não perdeu o ânimo e ainda é criativo”, disse à revista especializada The Art Newspaper a mulher, Alla, mãe da sua única filha, agora com 28 anos —, Viktor Bout não foi abandonado por Vladimir Putin, que justamente antes do início da operação militar na Ucrânia, recordou esta quarta-feira o espanhol ABC, voltou a exigir a sua extradição para a Rússia.

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Desde a sua detenção em Banguecoque que o Kremlin tem acusado os Estados Unidos de engendrar um complot para incriminar Bout, que sempre se apresentou como um empresário do ramo do transporte internacional — de mercadorias legais, nomeadamente flores e géneros alimentícios.

Em janeiro de 2019, o governo russo chegou mesmo a criticar no Twitter a demora de seis meses por parte dos Estados Unidos na aprovação dos vistos de Alla e Yelizaveta Bout. “Esperamos que, já que há mais de 10 anos que mantêm o nosso cidadão Viktor Bout atrás das grades, deixem pelo menos a sua mulher e filha visitá-lo”, escreveu na altura o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia naquela rede social.

Durante a leitura da sentença, em abril de 2012, o “Mercador da Morte”, cuja naturalidade não é consensual — uns dizem que nasceu no território que hoje corresponde à Ucrânia, outros no Turquemenistão —, não se conteve e gritou: “É mentira!”. Antes disso, descreveu na altura a BBC, Bout tinha dito ao juiz, através do intérprete de russo presente em tribunal, que “nunca tinha tido a intenção de matar ninguém” e que “Deus sabia a verdade”.

O então procurador-geral de Manhattan, Preet Bahara, não podia ter sido mais dissonante: “Viktor Bout tem sido inimigo número um do tráfico internacional de armas há muitos anos, tendo armado alguns dos conflitos mais violentos em todo o mundo. Finalmente foi levado à justiça num tribunal americano”.

Não deixa de ser estranho que Bout, que já na altura sabia falar fluentemente cinco ou seis línguas (inglês, português, usbeque, árabe e esperanto incluídas), tenha recorrido a um mediador para falar em tribunal. Na altura em que foi preso, o maior traficante de armas do mundo tinha no currículo negócios milionários com países de todo o mundo, incluindo vários do Médio Oriente, Libéria, Serra Leoa, Angola, República Centro-Africana, Congo, Sudão, Líbia e até… os Estados Unidos, na altura da primeira guerra do Iraque e noutras operações militares.

“A cooperação entre o Pentágono e Bout terminou quando Washington conseguiu organizar a comunicação aérea com o contingente militar [no Iraque]”, diz Douglas Farah, co-autor do livro “The Merchant of Death”, citado pelo ABC. E piorou ainda mais após o 11 de Setembro de 2001, dadas as ligações ao Afeganistão do traficante — conhecido por vender armas de forma indiscriminada, apolítica e, em diversas ocasiões, aos dois lados do mesmo conflito.

É na origem dos primeiros carregamentos de armas que alguma vez vendeu, na década de 1990, que está a ligação agora recuperada de Bout, também conhecido como “Boris”, “Vadim Markovich Aminov” e “Viktor Butt” (por motivos óbvios, pelos seus detratores), à Ucrânia.

Recorda o jornal espanhol, foi a partir do arsenal russo naquele país que o protegido de Vladimir Putin fez os seus primeiros milhões: vendeu-o, em 1998, por quase 50 milhões de dólares, e tratou de o transportar nos três aviões de carga Antonov que tinha comprado previamente, pela módica quantia de 120 mil dólares, logo depois da queda do regime comunista da URSS. A partir daí, Viktor Bout foi construindo o seu império, escreve o ABC, mantendo sempre como origem principal das armas que vendia a Europa de Leste, mais concretamente a Bulgária, a Moldávia e a Ucrânia.

Este novo ramo de negócio, por que decidiu enveredar em plena ressaca do colapso da URSS, não foi de todo a primeira escolha de Viktor Bout, vegetariano que chegou a queixar-se da dieta isenta de fruta, vegetais e vitaminas que lhe foi imposta na ala de segurança máxima do Centro Correcional Metropolitano de Manhattan. Formado no Instituto Militar de Línguas Estrangeiras em Moscovo, chegou a trabalhar para as Nações Unidas, como intérprete, em Angola, em 1991. Imediatamente após a queda da URSS, em dezembro de 1991, foi tradutor da Força Aérea Russa na base militar de Vitebsk, na Bielorrússia. Foi lá que alcançou a patente de tenente e entrou para o FSB, o Serviço de Segurança Federal que ocupou o lugar deixado vago pelo antigo KGB — e onde se terá cruzado pela primeira vez com o atual Presidente russo.

Esta quarta-feira, Joe Biden anunciou a troca, feita na Turquia, de Trevor Reed, um estudante e ex-fuzileiro americano preso na Rússia em 2020, por agredir polícias embriagados, por Konstantin Yaroshenko, piloto russo condenado nos Estados Unidos a 20 anos de prisão por tráfico de droga.

Nas redes sociais surgiram de imediato referências a uma alegada associação entre o piloto agora libertado e Viktor Bout  — e a uma potencial troca envolvendo o “Mercador da Morte” no futuro próximo. Citado pela TASS, Yaroshenko garantiu nunca ter visto sequer Bout, a não ser pela televisão. Admitiu, ainda assim, ter uma coisa em comum com o traficante de armas: “O caso dele foi forjado. É totalmente absurdo. A própria ideia de justiça nos Estados Unidos não existe. Há mentiras por todo o lado”.

Artigo editado a 9 de dezembro de 2022 para incluir a informação de que Viktor Bout foi devolvido às autoridades russas, numa troca de prisioneiros com a basquetebolista Brittney Grinner, concretizada a 8 de dezembro.

Artigo novamente editado a 12 de dezembro de 2022 para incluir a informação de que Viktor Bout depois de ter sido devolvido às autoridades russas se somou às fileiras do Partido Liberal Democrático, o partido ultranacionalista leal ao Kremlin.