Um dos cinco retratos de Marilyn Monroe feitos em serigrafia e tinta acrílica sobre tela por Andy Warhol (1928-1987) em 1964, “Shot Sage Blue Marilyn”, tornou-se a obra mais cara do século XX ao ser vendida em leilão por 195 milhões de dólares, qualquer coisa como 185 milhões de euros. Era a grande aposta da leiloeira Christie’s, em Nova Iorque, e atingiu o valor recorde em escassos quatro minutos, numa sala onde toda a gente queria licitar. Para trás ficava Picasso e as suas “Femmes d’Alger (version 0)”, vendida em 2015 por 179,4 milhões de dólares, e mesmo o norte-americano Jean-Michel Basquiat cuja representação de um crânio, trabalho “Untitled”, de 1982, atingiu os 110,5 milhões de dólares em 2017 também em leilão, tendo ficado desde então com a marca da melhor peça americana.
A Marilyn Monroe que nos vem à memória sempre que o seu nome é invocado ou que de Andy Warhol se fala, qual Marilyn de todos nós, chegou à Christie’s pela mão da Fundação Thomas e Doris Ammann, com sede em Zurique, na Suíça, e foi comprada por Larry Gagosian, um dos mais bem cotados comerciantes de arte e galeristas dos EUA, avança o jornal Los Angeles Times. O dinheiro segue para obras de caridade numa ação filantrópica que visa a prestação de cuidados de saúde e o bem estar de crianças, bem como o desenvolvimento de programas educacionais. A obra de arte essa não se sabe qual é o seu destino nem para quem poderá ter sido Larry Gagosian o testa de ferro, uma vez que o marchand tem um carteira de contactos absolutamente excecional, contando, como tem vindo a revelar o New York Post e outros meios de comunicação norte-americanos, a nata da oligarquia russa que se interessa por arte.
Obra seminal da Pop Art e um dos trabalhos mais icónicos do pintor norte-americano de origem eslovena, o retrato de Marilyn, a atriz de cinema que encantou os Estados Unidos em meados do século passado e deixou atrás de si um mito inultrapassável por outra estrela da sétima arte, tinha tudo para ficar na História. Fazia parte de um portefólio de várias outras figuras do cinema e da música de popularidade enorme, como Elvis Presley ou Elizabeth Taylor e Judy Garland (um exemplar pertence à Coleção Berardo), Jacqueline Kennedy ou Mick Jagger, e existia em cinco versões que mais tarde, em 1967, foram aumentadas para nove, mas em serigrafia. O seu aparecimento, dois anos após a morte da emblemática atriz, conseguiu imortalizar a sua fama e o estrelato nunca mais deixou de ser seu.
Warhol pegava na técnica que iria implementar a todos os produtos de consumo para os tornar ainda mais consumíveis, multiplicando-os em séries serigráficas onde as cores marcariam a diferença. Assim, se nesta obra Marilyn aparece em fundo azul com o rosto pintado de cor-de-rosa, cabelo amarelo e lábios vermelhos, noutras o seu rosto aparece a vermelho e o fundo também vai mudando a tonalidade, note-se que as cores são as primárias e que são fortes. A “receita” usada pelo pai da Pop Art é “precisa e trabalhosa”, dizem, e contém o segredo do sucesso: a repetição do chavão simples, conciso e atrativo que define todo e qualquer mecanismo publicitário que se preze. Além disso, tem a unicidade do artista não mais ter recorrido a essa técnica depois de acabar a série.
A fotografia de Marilyn Monroe, que está na base da pintura de Andy Warhol, ou, se quisermos, da coloração da mesma, foi utilizada na promoção do filme “Niagara”, de 1953. Tirada por Henry Hathaway, já era uma imagem difundida e já se colara à figura da atriz, mas depois de Warhol a colorir passou a fazer parte da história da história da arte. E, ao mesmo tempo, a sua reprodução fácil em todo o tipo de materiais de merchandising, anos depois, fez da pintura original um exemplo banal de trabalhar tudo o que pertence ao campo visual mais impactante para a retina. A cor, ou as cores, de Warhol pertencem a um movimento preciso da arte e foram partilhadas por nomes tão distintos como Richard Hamilton, Roy Lichtenstein ou mesmo Keith Haring vinte anos depois. A sua utilização de forma saturada em cima das fotografias, contudo, dá à figura retratada uma dimensão plástica e material acima de qualquer sensação de vida. Transformadas em estereótipos, todas as imagens destas séries das celebridades se assemelham entre si e se caracterizam em uníssono como modelos impessoais e, de certa forma, imunes ao sentimento. Surgem vazios de estado de espírito, ou assumem o estado de espírito que o espectador lhe quiser dar em determinado momento.
Marilyn sorri, com um sorriso impenetrável, melancólico talvez, distante certamente. E não é preciso fazer um esforço grande para nos lembrarmos, na história da arte, do maior ícone de que há memória no que diz respeito ao retrato. Tem razão, leitor, falamos da “Mona Lisa”, de Leonardo Da Vinci. As semelhanças, salvo seja, são flagrantes no que concerne esse sorriso discreto, e aquele olhar apartado, alheado, sem rumo. Não é por acaso. Precisamente um ano antes de pintar esta valiosa “Shot Sage Blue Marilyn”, mais concretamente em fevereiro de 1963, Andy Warhol visitou por várias vezes a célebre Gioconda no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, onde o quadro do Louvre parisiense esteve exposto durante todo o mês. Já nessa altura, o artista natural de Pittsburgh tinha feito algumas trabalhos com a imagem (a que voltaria um ano antes de morrer, em 1986), e como consequência, desvirtuava a herança artística do mestre do Renascimento, e, ao mesmo tempo, usava a popularidade da imagem original para marcar posição no campo da contemporaneidade de então.
Terá sido aí que a viragem se deu. Warhol agarrou-se ao trabalho e fez as cinco preciosas Marilyns, das quais apenas uma chegou a leilão. Antes disso, ainda em 1962, logo após a morte daquela que ficará na história como a namoradinha da América que cantou como ninguém os ‘Parabéns a Você’ ao presidente Kennedy, Warhol ensaiara o “padrão” Marilyn em serigrafias mais ou menos rascas, com manchas e marcas de tinta branca à mistura, imagens mais parecidas com uma certa decadência que convinha à arte daquele tempo. Faltavam a essas serigrafias, vendidas por pouco mais de 200 dólares à época, o brilho e o glamour que, apesar de tudo, as cinco obras da série de 1964 já possuem depois da viragem dele como artista e da Pop Art como tendência artística.
Warhol era outro dois anos depois dessa primeira investida na imagem de Marilyn. O movimento de que era o pai tornara-se o mais popular numa América sedenta de protagonismos e deixara de chocar o mundo da arte tão habituado a menos ênfases e confetti. Ele, o artista, com uma vida secreta e extravagante ao mesmo tempo, era por si só uma estrela de tão perto das estrelas querer estar e estar efetivamente. O êxito da suas Brillo Boxes (pode ver exemplares no Museu Berardo, mais uma vez) e das suas latas de Campbell Soup faz-se sentir nessa altura, a arte de Andy entra televisão adentro, sai em tudo o que é revista e toma de assalto a cultura americana como nenhuma outra antes ou depois. Até hoje. Repetidamente.
E foi assim que o homem que dizia que toda a gente terá 15 minutos de fama tornou esta Marilyn famosa para a eternidade. Ele, como ela, também alcançou a imortalidade. Ontem voltou a mostrá-lo.