Já lá vão 50 anos desde a impactante publicação de Novas Cartas Portuguesas (1972). Obra intertextual escrita a seis mãos – as de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa –, o livro tem um papel de destaque na história literária portuguesa. Na sua proposta de génese, já estava a ideia de desafio ao regime. Ali, evidenciava-se a relação de subalternidade em que as mulheres viviam, sendo esta denunciada como construção social e sendo rejeitada a naturalização que o Estado Novo impingia a torto e a direito. Uma vez publicado, o livro teve o destino esperado, embora o o alcance da sua recepção tenha sido inimaginável, já que a sua proibição motivou actos de solidariedade internacional e manifestações, tendo ainda sido criado o primeiro grupo do Movimento de Libertação das Mulheres.
Vamos ao início. Minha Senhora de Mim (1971), de Maria Teresa Horta, havia sido apreendido. Moreira Baptista, secretário de Estado da Informação, ameaçara Snu Abecassis, da editora D. Quixote: se tornasse a publicar esse livro ou qualquer outro assinado pela autora, encerraria a editora. Maria Teresa Horta recebera cartas e telefonemas anónimos, com ameaças, tendo sido obrigada a pôr o telefone sob escuta. O caos estava instalado.
No seguimento do episódio, Maria Isabel Barreno, num dos almoços semanais das três autoras, propôs que escrevessem uma obra a três. Se a obra de uma mulher causava tanto estrilho, que faria uma de três? Acabaram por decidir nada fazer, mas, na semana seguinte, Maria Isabel Barreno levou para o almoço o primeiro texto. A partir daí, avançaram para a escrita de Novas Cartas Portuguesas. Para isso, partiram de Lettres Portugaises, um romance publicado pelo editor Claude Barbin em 1669. Este último tinha sido publicado anonimamente e o seu efeito fizera-se sentir nos séculos seguintes, tendo sido publicado em Portugal em 1969, numa edição bilingue da Assírio & Alvim, traduzida para português por Eugénio de Andrade. Romance epistolar, Lettres Portugaises compõe-se por cartas de amor escritas por Sóror Mariana Alcoforado, uma freira portuguesa, a um oficial francês, a partir de um convento em Beja.
Novas Cartas Portuguesas partiria daqui, tendo Mariana Alcoforado como principal figura. O nome não foi logo consensual, uma vez que representava o enclausuramento, mas lá se avançou para um conjunto caleidoscópico de textos. Logo à cabeça, havia três regras para as autoras: cada uma escreveria cinco cartas, teriam liberdade absoluta e tudo seria assinado pelas três. Este último ponto foi uma experiência de escrita inédita, já que, mesmo nos casos em vários autores de juntavam para escrevem livros, cada um assumia as suas partes. Composta por cartas, em prosa e em poesia, contos, monólogos, ensaios e uma transcrição do Código Penal Português, Novas Cartas Portugueses trouxe um retrato amplo da condição da mulher em Portugal no decorrer do Estado Novo. A miríade de personagens serviu para mostrar uma opressão transversal, ao mesmo tempo que tocava em temas tabu para a sociedade de então, como a guerra colonial ou a sexualidade feminina.
Desta forma, o livro batia-se com as barreiras estabelecidas pela política e pela moral do regime salazarista. Ao recusar reconhecê-las, enfrentava-as e punha-as em xeque. Se o contexto legal impunha menos direitos para as mulheres do que para os homens, as autoras metiam as descriminações de sexo no centro da narrativa, dando retratos pungentes, mostrando a vida sem complacências. E ali nem houve uma tendência para fazer de todas as mulheres Mariana Alcoforado ou Joana d’Arc. Pelo contrário, foi-se a tudo, havendo mulheres vítimas de violações pelo próprio pai (“O pai”), acostumadas à própria dominação, mulheres enclausuradas em conventos contra a sua vontade ou mulheres que se recusaram à subjugação (“A luta”). Com tudo dado ao leitor de rompante, quem lia o livro era de imediato confrontado com as contradições de uma sociedade. E, em vez de simplesmente a espelhar ou a expor, Novas Cartas Portuguesas ia à luta. Convém aqui acrescentar que as autoras nunca precisaram de apresentar argumentos, de listar tópicos, de criar panfletos. A literatura foi a arma por estar imbuída da vida real, e foi o elemento literário que aqui teve poder. E, para levarem a cabo o projecto literário, as autoras aliaram a capacidade analítica ao exercício estético. Na estrutura interna da obra, eis o elemento social. Em vez de contextualizar a narrativa, possibilitou-a, e também a escrita terá sido um acto social, até porque já respondia à censura e à violência de quem queria excluir as mulheres do acesso à produção simbólica.
Além de Minha Senhora de Mim (1971) em que Maria Teresa Horta reivindicava peremptoriamente o direito à sexualidade feminina, o trio contava ainda com Maina Mendes (1969), em que Maria Velho da Costa iniciava o seu caminho de transgressão das convenções sociais, denunciando uma sociedade patriarcal, e com Os Outros Legítimos Superiores (1970), em que Maria Isabel Barreno denunciava o silêncio simbólico sob o qual viviam as mulheres. A primeira edição de Novas Cartas Portuguesas veio pela Estúdios Cor e contou com a direcção literária de Natália Correia. Esta, instada a cortar partes, publicou a obra integralmente.
O esforço foi grande e o papel morreu pouco depois. A versão sem cortes foi a público, tendo sido recolhida e destruída três dias depois. O processo judicial que se seguiu levou as autoras a interrogatórios da PIDE/DGS separadamente. A censura de Marcelo Caetano, que não divergia muito da de Salazar, acusava as autoras de terem feito uma obra pornográfica e atentória da moral pública.
O parecer da PIDE, que consta do relatório nº 9462 dos processos de livros censurados, homologado em 26 de Maio de 1972, apontava partes consideradas particularmente imorais:
“Este livro é constituído por uma série de textos em prosa e versos ligados à história de Mariana, mas em que se preconiza sempre a emancipação da mulher em todos os seus aspectos, através de histórias e reflexões.
Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (v.g. pp. 48, 88, 98, 102, 122, 140, 164, 188, 214, 216, 246, 284, 316 e 318), constituindo uma ofensa aos costumes e a moral vigente no País.
Concluindo: Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia [sic], enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime.”
As autoras foram chamadas à esquadra e só não foram imediatamente presas porque Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa pagaram uma caução de quinze contos. Maria Isabel Barreno, depois de ter provado que não tinha posses para isso, passou a ter de comparecer uma vez por mês na polícia, para ofício de corpo presente.
Em Junho de 1972, foi feito um auto de busca para que fossem apreendidos os exemplares da obra. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, contactou as autoras para que declarassem publicamente que, através do livro, não tinham querido ofender nem o governo nem o nome do país. Em troca, o o processo por crime de abuso de liberdade de imprensa seria retirado. A proposta foi rejeitada pelas três. Moreira Baptista pressionara o dono, o direito e o chefe da redacção de A Capital, jornal onde Maria Teresa Horta trabalhava, para que a despedissem. Não conseguiu o que queria, mas a autora deixou de poder assinar qualquer artigo. E não o conseguiu porque David Mourão-Ferreira ameaçou que, caso o fizessem, recusaria um prémio que lhe havia sido atribuído, divulgando as razões do protesto. Entre isto, Maria Teresa Horta voltava a receber telefonemas anónimos e ameaças.
No país, chegou a haver proibição de informação relativa a este caso via imprensa escrita ou falada. A ameaça, caso houvesse incumprimento, era a de fecharem os jornais. A pressão acabou por surtir o efeito contrário e o caso teve várias repercussões na Europa, o que incluiu uma ocupação de mulheres na Embaixada Portuguesa da Holanda, manifestaçõees de repúdio em Washington e várias manifestações em Paris, com figuras como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras ou Jean-Paul Sartre, sendo criado um caso ímpar de recepção internacional. Para além disso, o livro, contrabandeado para França, passou por traduções rápidas em vários países ocidentais. Em Portugal, ninguém podia lê-lo.
Pelo meio, até o processo de escrita se metia no processo: escrita a seis mãos, a obra desafiava as noções de autoria. Ainda que nos interrogatórios se tenha tentado saber quem escreveu o quê, as autoras jamais o revelaram. O julgamento às três autoras começou a 25 de Outubro de 1973 e, após alguns adiamentos, acabou por não se dar, devido ao 25 de Abril.
O impacto que a obra teve passa principalmente pelas suas condições de produção. Assinado por três escritoras, o livro metia as mãos em tudo: opressões de classe, guerra colonial, opressão das mulheres. Ainda por cima, estava já imbuído do elemento da coragem, uma vez que seria óbvio que a publicação do livro não ia deixar as autoras incólumes. O Estado Novo condenava o que se lhe opunha e parecia ameaçar perpetuar-se com o apoio das classes dominantes.
Hoje, ocupa um lugar singular na literatura de combate ao Estado Novo. E, para isso, bastou às autoras fazerem literatura numa realidade em que o próprio acto performativo da escrita já era político e subversivo. Em Novas Cartas Portuguesas, escancaram o papel de inferioridade social das mulheres num país em que se enraizava e impunha uma noção de família e de nação que domesticava as mulheres para dar o espaço público – político, portanto – aos homens, com o seu inerente poder de decisão. Recusando-se a perder o acesso à tomada de decisões e à produção simbólica, as autoras mostraram em múltiplas faces as relações entre homens e mulheres, desde a instituição social ao quarto.
Por ter criado um discurso que incomodou o poder, o poder tentou calá-las, e para isso difamou a obra, dissociando-a do seu conteúdo real. Tudo isto criou a revolta e foi a revolta que respondeu, não deixando a acção censória passar incólume.
Hoje, ao olhar para as Novas Cartas Portuguesas, ainda vemos um texto vivo, que também fala ao leitor coevo. Cinquenta anos volvidos, continua a ser lido e estudado pelo seu carácter singular, e ainda pela multiplicidade que oferece em termos de experiências de leitura. Marcado pelo contexto de onde surgiu e pela recepção que teve, o livro é uma peça de literatura que teve mão no mundo. Não só não é coisa pouca como é mesmo quase tudo.
A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico