A adolescência – sobretudo o tempo da adolescência que é vivido na escola – ganhou especial ênfase na ficção audiovisual a partir dos anos 1980, quando as tipificações ganharam prioridade, quando a pertença a um grupo se transformou em algo decisivo para contar uma história. Diminuía o valor pessoal de uma personagem, crescia o valor simbólico e isso tinha peso suficiente para se tornar motor de um filme. “O Clube” (1985), de John Hughes, cria aquela admirável situação de que, quando postos a um mesmo nível, fora dos seus contextos, os adolescentes percebem que têm mais em comum do que pensam. E hoje, em 2022, podemos dizer que “O Clube” existiu desde sempre em “Stranger Things”. Era uma referência já no início, mas só agora, na quarta temporada, a adolescência ganha um peso maior na série dos irmãos Duffer.

Uma dos valores óbvios deste regresso de “Stranger Things” é o reconhecimento de que as personagens cresceram. É, apesar de tudo, uma ocasião rara neste tipo de ficção: há um episódio brilhante de “South Park” sobre isso, chamado “Quarta Classe”, quando os protagonistas passam – finalmente – de ano. Apesar de existirem adolescentes em “Stranger Things” desde sempre, apesar de os seus problemas serem tangíveis e motivarem os conflitos e as uniões entre as personagens, o assunto nunca foi tratado com o peso que, inevitavelmente, conquistou agora.

Uma semana antes da estreia da temporada 4, numa conferência de imprensa, Charlie Heaton (que interpreta Jonathan) comparava o crescimento dos heróis de “Stranger Things” com a forma como Harry Potter evoluiu. É uma comparação que faz sentido porque é só quando o núcleo central de personagens chega a determinada idade que se começam a sentir os problemas. Em “Stranger Things” foi preciso os miúdos crescerem para a idade ser um elemento chave na narrativa.

[o trailer da nova temporada “Stranger Things”:]

https://www.youtube.com/watch?v=yQEondeGvKo

Parte disto não estava nos planos. A pandemia atrasou as gravações da série e os atores cresceram mais do que a evolução que estava no papel. O corpo dos atores não corresponde ao salto temporal entre uma temporada e outra (que são meses) e se a estranheza da adolescência não entrasse na narrativa, ela sentir-se-ia de imediato na relação entre a história escrita e aquilo que se vê. Se há uns que simplesmente parecem mais altos, como Eleven (Millie Bobby Brown), Will (Noah Schnapp) ou Dustin (Gaten Matarazzo), outros parecem exageradamente crescidos, como Mark (Finn Wolfhard) e Lucas (Caleb McLaughlin).

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À idade juntam-se outros fatores: além de crescerem, as personagens estão agora separadas, noutras cidades, noutras escolas. Will e Eleven mudaram-se para a Califórnia; Dustin, Mark e Lucas continuam a viver em Hawkins (a cidade ficcional do Indiana onde tudo se passa). Apesar da distância, Mark e Eleven ainda são namorados. Em Hawkins, Mark, Dustin e Lucas continuam a jogar Dungeons & Dragons. Lucas, contudo, joga também basquetebol e, pelos códigos da adolescência, é um atividade que não é compatível com a existência de um nerd. E é logo aí que nasce uma das grandes divisões e motores narrativos desta quarta temporada de “Stranger Things”.

Importa lembrar como chegámos aqui. Em 2016, quando a série começou, “Dungeons & Dragons” instala-se de imediato como uma das principais referências para “Stranger Things”. Aliás, é desse universo que surgem os nomes de muitas das figuras fantásticas que vão habitando a série. Se a primeira temporada foi uma de fascínio, mais do que um tributo a uma geração que nasceu ou cresceu nos 1980, era também um reconhecimento face àquilo que já não se repete. E em vez de querer viver tudo outra vez – como acontece com muita cultura popular que procura a muleta nostálgica –, criava um novo universo que sabia beber desses códigos: como os filmes da série “Gritos” fizeram, por exemplo.

[o elenco de “Stranger Things” recapitula o que aconteceu nas três temporadas anteriores:]

A segunda temporada brincava com os passos em falsos das sequelas e ela própria era um passo em falso genuíno, porque era suposto funcionar assim mesmo. A terceira foi o momento do exagero, em que entraram novas personagens, o barulho aumentou para se estabelecerem pontes para o futuro, onde fechar certos arcos narrativos foi missão assumida, onde tudo existiu em grande escala, dos monstros à destruição (incluindo russos, colocando “Stranger Things” e Hawkins num qualquer epicentro imaginário da Guerra Fria).

Esta quarta temporada, com sete episódios disponíveis a 27 de maio e mais dois que só chegarão a 1 de julho, tem capítulos mais longos – à volta dos 75 minutos – e traz um novo vilão – Vecna, também roubado a “Dungeons & Dragons” – que, apesar de estar no Upside Down – a realidade paralela fantástica de “Stranger Things” – sente-se como um monstro diferentes de todos os que já vimos até agora na série. Como Dustin – quem mais? — a dado momento faz questão de lembrar, está próximo de Freddy Krueger de “O Pesadelo Em Elm Street” e de todo o seu imaginário. Como se não bastasse, Robert Englund, o ator que popularizou Krueger, tem um papel nesta temporada.

Tanto este novo tipo de vilão como o elemento da adolescência – misturado com os corpos crescidos dos atores – são um refresco em “Stranger Things”. Há aqui muitos elementos e sensações que transportam o espectador para a primeira temporada. A ideia não é recomeçar, antes de conduzir o espectador para um lugar de nostalgia dentro da própria nostalgia, enquanto se prepara o fim da série (que acontecerá na próxima temporada). Estes não são episódios ponte para um final, são antes a criação de um novo sentimento, um que vai beber ao passado e que reconhece um fim a caminho. A fórmula não é tanto a de outras séries, mas sim das formas da ficção dos anos 1980.

[os primeiros oito minutos da nova temporada:]

https://www.youtube.com/watch?v=5QiG9w0SUzk

A sensação refrescante desta quarta temporada não vem das saudades que os fãs podem ter da história e das personagens (ainda que uma distância de três anos ajude). O que acontece é que há alterações nos códigos, há uma narrativa pujante que adora o seu vilão: não é tangível de imediato, mas quanto mais se sabe e se percebe Vecna, mais delicioso tudo fica. E é um vilão que traz referências ótimas do cinema de terror dos 1980s – “Elm Street” e não só – de um modo que ainda não tínhamos visto, porque se alimentou mais do fantástico nas primeiras temporadas do que propriamente do terror.

Mais escura? Não necessariamente. Mete mais medo? Eventualmente. Mas tal como “O Clube”, “Stranger Things” instituiu desde o início o princípio de que temos todos – enquanto espectadores – mais em comum do que possa parecer. E apesar do fantástico, dos códigos e referências, é uma série agregadora. Voltar a uma Hawkins redimensionada para uma escala mais pequena – apesar de nunca esquecer o que se passou nas três temporadas anteriores – é um deleite inesperado. Inevitável pensar nas primeiras temporadas como uma espécie de trilogia (que agora se fecha) e nesta quarta como um recomeço que assume a continuidade narrativa. Ou até um jogo com a ideia de remake sem realmente o ser: o que é uma coisa perfeitamente possível na mente dos irmãos Duffer. Seja como for, “Stranger Things” regressa com um charme notável, boas aventuras e uma sensação honesta de que gosta dos fãs. Não os esquece, não os ignora, sabe do que gostam. Foi assim que os conquistou, é assim que continua.