Comecei a compreender melhor a dimensão de possibilidades da Galp da A5 quando lá vendi umas carteiras no OLx que me tinham oferecido e a compradora sugeriu o local para se fazer a troca. Na altura, pareceu-me tão inesperado como depois se me afigurou óbvio. Se é para parecer meio obscuro e estranho, como aparenta ser tudo o que fazemos través da Internet, porque não prolongar a sensação e fazer negócios numa bomba de gasolina ventosa, a meio de uma autoestrada? A minha compradora bem apalpou as carteiras, procurou defeitos, buracos e manchas, antes de me passar as duas notas de vinte e me oferecer aquele sorriso que em Portugal pode muito bem significar uma amizade para a vida.

Há muito que há um lugar no meu coração para a área de serviço da Galp, na autoestrada número 5, entre Lisboa a Cascais. Os habitués chamam-lhe “a Galp da A5”, mas os verdadeiros e assíduos frequentadores, os que conhecem todos os cantos da casa, que até sabem da vida dos funcionários e vice-versa, dizem simplesmente a “bomba”.

Imagino que a Galp da A5 seja das áreas de serviço mais conhecidas e concorridas em Portugal, e, numa visita recente, comprovei que é um sítio para quem não tem pressa, em especial no sentido Lisboa-Cascais. Tanto assim é, que tomei consciência que sempre que faço o desvio, naquela subida a seguir ao Estádio e antes das portagens para Oeiras, passo as mãos pelos cabelos, respiro profundamente e imagino-me num anúncio que marcou a minha infância, em que uma mulher triste conduz um VW Coccinelle branco até perto de uma falésia. Porquê? Porque é o que as mulheres tristes e sozinhas fazem quando estão tristes e sozinhas e estão perto de falésias. Sempre gostei do anúncio, porque em menos de nada, esta mulher (que tantas vezes fui eu…) muda completamente o seu état d’esprit, depois de tirar um grande frasco de Nescafé de um saco, enfiar uma resistência no buraco do isqueiro do Coccinelle e preparar um café quentinho numa chávena que também havia por ali. Por coincidência, mal o café começa a fumegar e aquecer-lhe as mãos, o sol começa a nascer e ela sorri, enquanto escutamos juntos a música I Can See Cleary Now. É um novo começo para a mulher do Coccinelle e acredito que virar para a bomba da A5 pode ser muita vezes um novo começo para quem vem chateado de um longo dia de trabalho ou não quer ir para casa por algum motivo. Vale sempre a pena desviar, acreditem.

O efeito do Nescafé de chegar à bomba passa depressa porque o ambiente pode ficar um pouco misterioso e convém estar atento. Entre quem entra e sai, por vezes quase podemos cheirar os encontros clandestinos que de certeza acontecem ali, o que não deixa de ser excitante. Espiões, gente solitária ou simplesmente les amoureux, sabem que é um território com regras próprias, que só não tem xerife porque ainda ninguém se lembrou. É muito frequente, por exemplo, encontrar homens a fumar à porta da loja, a olhando para o grande vazio ou para quem coloca combustível. Fumar numa bomba de gasolina é perigoso, mas num enclave com regras próprias tudo pode acontecer e quem sabe fumar à porta da bomba tenha um significado. Talvez o cigarrinho à porta da loja seja o Nescafé de muitos, todos respeitam, ninguém parece incomodado, o que também aprendi ser uma parte importante do que é ser português: cada um é como cada qual.

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As bombas não são locais para mulheres e é altura de começar a falar do assunto. As minhas amigas trocam informações sobre as poucas estações de serviço com funcionários que metem o combustível na voiture  e ninguém me garante que muitas não estejam a trocar para carros elétricos por estarem cansadas deste jogo de procura permanente. Compreendo-as bem. A gasolina cheira mal, as mangueiras são muito pesadas e sujas, o chão é um nojo, nunca há papel nos dispensadores e não é difícil lascar uma unha. Na A5, apesar de tudo estar em ordem e haver um esforço de asseio, há ainda o extra de haver muito vento, sempre um aborrecimento quando se usa saia ou simplesmente não se quer arruinar o penteado.

Aposto que todas as pessoas que passam habitualmente naquela autoestrada já pararam pelo menos uma vez na Galp da A5. A sensação única de sentir o tempo a passar devagar naquele planalto de alcatrão, deixar o carro parado na bomba, alheios a quem possa querer abastecer de seguida, entrar no edifício de vidro para pagar, mas folhear antes as revistas e os jornais sem comprar nada, aproveitar para consultar o saldo no multibanco, talvez escolher uma garrafa de Iced Tea, confirmando com paciência se é de manga ou pêssego, aproveitar e rastrear que CD ou DVD há em promoção, até decidir por fim encarreirar na fila para pagar o combustível, onde fruímos ainda a chance de comprar três pacotes de Halls pelo preço de dois, levar duas raspadinhas porque nunca se sabe, dois maços de Iqos e, claro, pedir um café e um copo de água. Do outro lado da montra, o nosso carro fica ali, já atestado, a olhar para nós como um cão que sabe que tem de ficar na rua, a ocupar a bomba durante longos minutos, uma experiência de empoderamento tão intensa que merecia que se cobrasse bilhete.

Nem só de combustível, Iced tea e raspadinhas vive a área de serviço A5. Como se imagina, quem tem carro elétrico tem por lá postos de carregamento e há zonas para encher os pneus de ar, com aquelas mangueirinhas de água ao lado.

Durante muito tempo, o amplo McDonald’s, ou o “Méque” (como dizem os jovens em Portugal), era a grande atração de quem por ali parava e continua em grande forma, seja como um spot de pais divorciados que não sabem que fazer com os filhos ou para quem quer comer um sundae sem ser apanhado pelos familiares e amigos a quem juraram ter cortado nos doces. Há poucos meses, abriu por ali um espetacular Lidl, a confirmar a vitalidade e o crescimento do PIB daquela autêntica mini cidade. Além disso, temos a loja da Via Verde e um hotel Íbis, onde nunca estive mas que certamente terá os seus clientes e as suas utilidades.

Também existe uma oficina e um local para lavar os automóveis, de que também nunca precisei, mas fico contente que existam e estejam de saúde. Até há um monumento em pedra ao lado do abastecimento GPL a contribuir para o efeito borogodó, como diria a minha amiga Thaís. É o que ela diz dos homens feios que acha irresistíveis e é capaz de ter razão. A Galp da A5 não é propriamente merecedora de um prémio Pritzker, mas o seu encanto e magia são evidentes, mesmo se do lado contrário faça lembrar a Alemanha do Leste antes da queda do muro, porque só uma há bomba com as coisas que as bombas vendem e um pequeno restaurante a um canto. Felizmente, graças a uma curva apertadíssima logo à entrada, podemos vir para depressa à Alemanha rica e capitalista, através de uma passagem por cima da autoestrada que funciona para os dois lados. Para quem gosta de discutir les effets de la politique, a metáfora é bem viva.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.

Nota: como uma leitora atenta retificou Patrícia Le Mans, após a publicação deste artigo, o Ibis da A5 “já fechou há uns anos… curiosamente após um assalto em noite de passagem de ano em que não houve um único cliente a apresentar queixa”.