Quando estudava no College de Charleston, na Carolina do Sul, Veronica Ivy começou a jogar badminton mas perante a falta de adesão à modalidade foi revelando um crescente interesse no ciclismo. Tirou depois um bacharelato em filosofia na Universidade de Victoria e seguiu toda a carreira académica na área até ao doutoramento, em 2012, na Universidade de Waterloo. O ciclismo, esse, passou a ser uma constante como os livros. E, mais especificamente, o ciclismo de pista. Seis anos mais tarde, fez história nos Mundiais.

Federação de Natação limita participação de atletas transgénero em provas femininas

Ivy pensou pela primeira vez que poderia ser transgénero ainda com 13 anos mas demoraria mais 16 para se assumir como tal, numa altura em que já tinha começado a transição. Dois dias depois de defender a sua dissertação do doutoramento, escreveu uma carta aos alunos na condição de professora assistente a contar todo o processo. No entanto, a parte académica acabaria por ficar mais de parte, com a aposta no ciclismo de pista a permitir que se tornasse a primeira transgénero campeã mundial da modalidade, quando venceu a prova de sprint na faixa 35-44 anos. Festejou mas, pouco depois, começava uma outra “luta” tão ou mais complicada do que aquela que acabara de ganhar e para a qual ser melhor poderia não ser suficiente.

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Jennifer Wagner, que ficou com a medalha de bronze, apontou o dedo a Ivy dizendo que tinha vantagens físicas de nascimento que continuavam a fazer a diferença.

Caroline van Herrikhuyzen, que ganhara a medalha de prata, apoiou a atleta canadiana que acabara de conquistar o primeiro triunfo num Campeonato do Mundo mas era falada por outras razões.

Martina Navratilova, uma das melhores tenistas de sempre, falou de uma decisão “de loucos”, “insana” e que promovia a “batota” ao permitir que Veronica Ivy participasse numa prova de mulheres.

“São comentários de uma pessoa transfóbica. Como está nas regras fundamentais do Comité Olímpico Internacional, a prática do desporto é um direito humano. Cumpri tudo o que estava previsto nas leis, que vigoram desde 2003, e mantive os níveis de testosterona abaixo do valor que está regulamentado”, disse. Voltou a ganhar no ano seguinte, foi sentindo menos comentários do que acontecera em 2018, seguiu com a sua carreira. Hoje, a canadiana volta a ser notícia, não para voltar a defender aquilo que lhe pertencia por direito próprio mas por perceber que outras Veronicas Ivys estão em risco em várias modalidades, numa discussão que voltou com o caso da natação mas que se estende de forma transversal no desporto.

“Não houve um único estudo revisto sobre nadadores transgéneros que demonstre que exista algum tipo de vantagem competitiva para uma transição depois da puberdade. Por isso, assinalar a puberdade como um ponto de rutura não tem nenhuma evidência como base, não se baseia numa vantagem para as mulheres transgénero mas sim na observação do que acontece com os atletas masculinos cisgéneros em comparação com as atletas femininas cisgéneros”, argumentou a campeã mundial de ciclismo de pista, apontando depois o dedo à parte mais política desencadeada pelo aparecimento da americana Lia Thomas.

“Não é assim que isto funciona. Quando estás a tratar de mulheres transgénero, é necessário estudar todas essas atletas e a Federação Internacional de Natação [FINA] não fez isso”, apontando o dedo para o que se passa nesta altura nos EUA: “Ali as pessoas transgénero estão sob ataque… Pessoas que tentam proibir os tratamentos e o acesso a todas as atenções médicas e o desporto… os políticos pedem para que sejam assassinadas. Este é o contexto que temos quando analisamos uma situação deste tipo”.

“Foi como passar de uma penthouse para sem abrigo”

A natação não foi a primeira modalidade a colocar estas questões, depois do primeiro passo dando antes pelo râguebi sem ter o mesmo mediatismo por não ser olímpica argumentando “motivos de segurança”. “Tal como acontece em muitos outros desportos, as diferenças fisiológicas entre homens e mulheres requerem categorias de râguebi para cada um por razões de segurança e rendimento. Dada a melhor evidência disponível dos efeitos da redução de testosterona nestes atributos físicos para mulheres transgéneros, concluiu-se que atualmente não se pode garantir essa segurança e equidade para as mulheres que competem contra mulheres no râguebi”, defendera a World Rugby, que ainda assim não fez qualquer restrição a nível de competições nacional e também de homens transgéneros em provas masculinas.

“Foi como passar de uma penthouse para sem abrigo. Cheguei a ser agredida fisicamente por companheiras de equipa e no ano seguinte algumas adversárias quiseram lesionar-me. Algumas já me pediram desculpas desde aí. Algumas não, nunca vão mudar, mas valorizo as que se desculparam, fez-me bem”, contou esta semana a antiga jogadora de râguebi Caroline Layt sobre o que viveu entre 2005 e 2007 quando as pessoas descobriram que era transgénero. “Somos seres humanos, temos sentimentos e sentimo-nos como se estivéssemos a ser excluídos. Eu fiz a minha transição há muito, muito tempo. Parece que não ouvem quando explicamos que nos sentimos mulheres desde uma idade muito nova. Somos punidas por fazer a transição, somos punidas por ter que passar pela puberdade. Basicamente o que estão a dizer é ‘Não vos queremos’. Vantagem? Não temos todas a mesma altura, peso e tamanho”, acrescentou a ex-atleta.

A partir daí, começou a sentir-se um aguardado efeito bola de neve em relação ao tema. Um porta-voz da FIFA assumiu à agência DPA que a FIFA “está nesta altura a rever os seus regulamentos de elegibilidade de género, consultando todas as partes interessadas especializadas”. “Se a FIFA for solicitada a verificar a elegibilidade de um jogador antes de os novos regulamentos entrarem em vigor, qualquer caso será tratado de forma individual, levando em conta o claro entendimento da FIFA no compromisso com o respeito pelos direitos humanos”, acrescentou. Além do futebol, também o atletismo abriu a porta a mudanças. “Sempre acreditámos que a biologia supera o género e vamos continuar a rever regulamentos de acordo com isso. Vamos seguir sempre a ciência”, referiu Sebastien Coe, líder da World Athletics, à BBC.

Nos últimos Jogos Olímpicos de Tóquio, Laurel Hubbard, atleta transgénero da Nova Zelândia, foi não só apurada como a atleta mais velha no halterofilismo na categoria de +87kg depois de ter participado em prova masculinas em 2013. E o interesse era facilmente percetível, com a organização a explicar que só havia entradas para um terço do número de acreditações que foram pedidas para a competição. Ficou longe das medalhas ao contrário do que aconteceu com Quinn, jogadora de futebol do Canadá que se tornou no Japão na primeira mulher transgénero a ganhar uma medalha de ouro na competição. Não foram as únicas nesta edição mas ficaram como as mais marcantes. Um ano depois, o foco é ao contrário.

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“Sou 100% a favor da inclusão trans. Penso que as pessoas também precisam de compreender que o desporto não é a coisa mais importante na vida, certo? A vida é a coisa mais importante da vida. E muito deste argumento da inclusão trans tem sido colocado através da lente extremamente minúscula dos desportos de elite. Estamos a falar de crianças. Estamos a falar da vida das pessoas. Ao mais alto nível, existe regulamentação. Nos desportos universitários, existe regulamentação. A nível olímpico e profissional também existe regulamentação . Não é como se fosse algo em que todos fazem o que quiserem”, destacou  continuou destacou Megan Rapinoe, jogadora de futebol de 36 anos campeã mundial e olímpica pelos EUA.

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“Mostrem-me as provas de que as mulheres trans estão a tirar as bolsas de estudo de todos, estão a dominar em cada desporto, estão a ganhar todos os títulos. Lamento, mas isso não está a acontecer. Portanto, precisamos começar pela inclusão, ponto final. Não podemos começar pelo oposto. Isso é cruel. Estamos a falar dos governos estaduais a cair sobre uma criança em alguns estados. Eles estão a cometer suicídio porque lhes dizem que são nojentos, diferentes, maldosos, pecadores e não podem praticar desporto com os amigos com quem cresceram. Acho que é monstruoso”, acrescentou à revista Time.

“Ninguém franziu um olho quando a Katie Ledecky ganhou com 20 piscinas de vantagem mas a Caster [Semenya, atleta da África do Sul] não pode correr e os ombros da Katie também são enormes. A maioria das crianças que tem falado quer apenas participar, o resto já é suficientemente difícil. Deixem os miúdos jogarem. As mulheres trans não estão a dominar o mundo do desporto feminino. Futuro? Não sei mas guardaria espaço para falar nessa altura. Sinto-me confiante na hipótese de deixarmos todos participar, com todos a sentirem-se bem e a ser também uma competição justa”, disse à Newsweek.

Uma terceira categoria criada entre todas as exceções no desporto

Voltando ao ponto inicial da discussão que ganhou outra projeção esta semana, a Federação Internacional de Natação (FINA) decidiu em Congresso à margem dos Mundiais de Budapeste que apenas os atletas transgénero que tenham completado a transição antes dos 12 anos poderão entrar em provas femininas (o que não acontece nas masculinas). “É uma medida apenas para proteger a justiça desportiva”, justificou o órgão após a aprovação com mais de 70% da medida, deixando ainda uma terceira “categoria aberta” no âmbito da política de integração de género para quem queira competir e não cumpra os requisitos. A decisão foi assente em critérios médicos, desportivos, científicos e de Direito, vincou ainda a FINA.

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Na teoria, o principal ponto passava pela vantagem competitiva e desportiva que as mulheres transgénero terão sempre mesmo com a redução dos níveis de testosterona. Na prática, houve um caso em específico, o de Lia Thomas, a funcionar como dínamo para a questão ser colocada, decidida e votada. A americana de 23 anos competiu até 2019 no setor masculino, entrou depois num processo de transição que a afastou das piscinas por mais de um ano e voltou em força nas provas femininas batendo uma série de recordes. No entanto, aquele que era o grande sonho, o de chegar aos Jogos Olímpicos, acaba assim por esfumar-se. “Só quero mostrar às crianças transgénero e aos jovens atletas transgénero que não estão sozinhos. Que não têm de escolher entre quem são e o desporto que adoram”, disse numa entrevista à Sports Illustrated.

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“Claro que fomos a favor, claramente a favor. Primeiro, porque os estudos a nível de vantagens e desvantagens dos atletas trans foram claros. Segundo, por uma questão de direitos humanos, por um lado, e por outro porque não se pode suprimir a justiça da competição. Não se pode incluir esses atletas prejudicando as outras atletas femininas. Isto acautela os direitos das atletas trans mas sem ferir a competição. O que se propõe é uma categoria aberta em que essas atletas se sintam incluídos. No salto pubertário, há alterações que fazem dos homens seres humanos mais altos e fortes. E isso não sai com a redução da testosterona mais tarde”, destacou António José Silva, presidente da Federação Portuguesa de Natação e novo líder da Liga Europeia de Natação (LEN), em declarações ao jornal Público.

Haverá então algumas exceções? Sim, ainda existem e não são poucas. O ciclismo, como foi supracitado, restringe o acesso mas aceita (embora tenha baixado um pouco mais a fasquia limite e aumentado o número mínimo de meses de transição). O ténis mantém a mesma diretriz sobre os níveis de testosterona no sangue, o basquetebol mantém também esse critério, o golfe tem regras menos rígidas, muitos continuam a reger-se pelas diretrizes anteriores à do Comité Olímpico Internacional de 2015.