Anitta não se apega, canta a rainha do baile funk. Até pode ser mas esta relação não tem fim à vista. Ela sobe, desce, pára, joga na cara e tem Portugal aos pés. Este domingo, o Rock in Rio Lisboa ficou à pinha, 80 mil corpos a requebrar, tudo a correr à procura de encontrar uma nesga de espaço com vista para o palco. E Anitta foi Anitta: deu para tudo, do funk de favela à “Garota de Ipanema”, antes de dar lugar a Post Malone no palco principal e descobrirmos um rapper-cantor inclassificável, capaz dos clichés maiores mas também do espanto que aquela voz pode causar.
Comecemos por Anitta. Vinte e uma horas, ei-la a chegar de mota para entrar em palco e para, ao longo de uma hora, confirmar que o funk brasileiro (ou será melhor dizer funk carioca?) é caso sério de popularidade, capaz de balançar ancas como muito poucas músicas do mundo.
À frente do concerto ouviremos a expressão “isso é baile de favela” e, apesar de estarmos no Parque da Bela Vista, em Lisboa, local onde é possível ver uma pessoa mascarada de “vaca que ri” a andar de slide, é mesmo verdade. Nome maior de um estilo musical que um dia o rapper paulista Rincon Sapiência descreveu como “a versão brasileira, própria, do hip-hop” (citamos de cor), que se alimentou das batidas de Miami (mais exatamente, do Miami bass) mas também da vontade do Brasil vingar-se da pobreza a dançar, Anitta tornou a música lusófona ouvida no mundo.
Sobre o impacto, não restam grandes dúvidas. Nem é preciso ir aos números, como os 269 milhões de visualizações no Youtube de “Envolver”, canção lançada no… inverno passado. Que diabo: Anitta conseguiu uma proeza maior, levar a Lisboa este domingo três emissárias desse país austero e pouco dado a bailes e funks que é a Alemanha, só por sua causa — vimo-lo à tarde, três raparigas loiríssimas com t-shirts a dizer que tinham viajado dali para Lisboa de propósito, só para a ver.
O fenómeno não é lusófono, mas mundial. E no entanto, aquelas batidas sujas do funk, lascivas, “secas” e graves, ressoam em Portugal com particular força, vimo-lo ao longo de pouco mais de uma hora. E depois há um truque exibido por Anitta na Bela Vista: o facto de muitas das músicas terem vozes de convidados (apresentadas assim mesmo, pré-gravadas a soar nas colunas) permite-lhe twerkar, trocar de roupa, bailar palco fora.
O arranque até foi relativamente morno, com “Onda Diferente”, “Me Gusta” e “Contatinho”. Mas o medley com “Some Que Ele Vem Atrás”, “Loka” e “Romance com Safadeza” começou a esquentar o clima, bandeiras do Brasil a esvoaçar pelo público, gente a desafiar os limites anatómicos do corpo. Foram-se então sucedendo os êxitos, sabidos na ponta da língua por dezenas de milhares na Bela Vista: Anitta a jogar bem na sua cara, a icónica “Magalenha” (de Sérgio Mendes) a entrar em cena por uns minutos misturada com um sample de “The Rhythm of the Night”, “Envolver” a garantir a manutenção da temperatura.
Durante alguns momentos o concerto cai, aparecem temas em inglês que não favorecem Anitta (feitos a pensar no público norte-americano?), há desvios da batida infecciosa do funk que sugerem uma cantora à procura de ser tudo e mais alguma coisa — habitualmente não é uma grande ideia —, há até uma versão de “Garota de Ipanema” que destoa e não lhe cai especialmente bem à afinação. Mas volta a festa funk com “No Chão Novinha” e “Vai Malandra”, primeiro, e mais tarde com “Dançarina”, “Bola Rebola” e “Show das Poderosas” a fechar.
Está visto, Anitta é caso sério de popularidade, assenta ao calor dos festivais de verão como uma luva e o regresso a Portugal não há-de tardar. Da próxima, talvez sem agitar uma bandeira espanhola que, por lapso, apanhou do público e exibiu. Tudo se esquece e ela faz por isso, atira declarações de amor até mais não: “Eu amo vocês”, “Portugal, vocês são foda”, “é um dos melhores dias da minha vida”. Venha o próximo.
Post Malone: um bom diabo desgovernado em corpo de homem
Lia-se assim num dos melhores textos escritos sobre Post Malone, o rapper e cantor norte-americano que na última meia dúzia de anos tornou-se um dos músicos mais ouvidos do planeta: “Post Malone é ridículo. Evitar dizer ‘o Post Malone é ridículo’ numa peça sobre o Post Malone seria um falhanço jornalístico (…) E no entanto…”.
Esse “no entanto”, sobre o qual assentava boa parte da tese do texto publicado pela Pitchfork cujo título era “Aprender a amar Post Malone”, tinha um argumento central: a voz, que não é de um rapper normal e não precisa sequer do habitual auto-tune para soar bem.
Pelo contrário, até: é quando o ouvimos cantar sem efeitos de voz, sem truques, que os pelos se eriçam, que ali encontramos um timbre único, cheio de rugosidade, capaz de emocionar. Arriscamos até dizer que, noutra época, Post Malone talvez tivesse sido um portentoso cantor de country, um homem que munido da guitarra ia salgar e amainar as feridas de quem o ouve só com a voz e a guitarra, em bares americanos ‘rednecks’ de beira de estrada. Ao mesmo tempo, podia ser um vocalista de hardcore, a gritar as entranhas por cima de uma saraivada de riffs de guitarra.
O ridículo, escrevia-se então naquele texto, passava pelas letras. Tudo certo quanto a isso, o rapaz até chamou a um disco beerpongs & bentleys (por sinal, o seu álbum mais interessante), mas não é coisa que preocupe muito a multidão que se concentrou no Parque da Bela Vista, filas de gente sem fim à vista. E entre os vários motivos para isso, alguns melhores do que outros, um é perfeitamente válido: nenhuma destas canções soaria remotamente tão interessante e não seria certamente tão popular se não fosse cantada por um intérprete vocal tão poderoso.
As canções oscilam entre as mais festivas, desbunda de mandachuva a viver sem travões, e as mais vulneráveis e íntimas, que nos parecem mais únicas. A voz comanda sempre independentemente da batida. Há momentos de destaque em “Better Now” e “Circles” e sobretudo na balada “Stay” (cortante, a forma como canta — lentamente, mas como quem grita e expulsa demónios — os versos “tell me that it’s all okay” e “fuck off and pour another drink”). Também o final impressiona, pela festa e a diversão visível de Post Malone em “White Iverson”, pela boa loucura e a interpretação frenética de “Rockstar”, o seu maior êxito, e pelo açúcar final de “Congratulations”.
A marcar o fim do concerto, no último tema, é disparado fogo de artifício no Parque da Bela Vista. Post Malone, finalizando uma atuação em crescendo, ainda aproveita para ir cumprimentar os fãs às primeiras filas, com os seguranças a terem de se esforçar para garantir que ele por ali não fica. E nem falámos ainda de uma guitarra partida em pleno palco…
Mais curioso do que os efeitos pirotécnicos e de iluminação que se veem em todo o concerto, porém, é mesmo a impressão que deixa, de bom diabo de cara tatuada e ar desgovernado, de rapaz que gere a vida relativamente aos tropeções, sem grandes preocupações, felicíssimo, uma criança em corpo de homem a arrancar toda a dor e todo o prazer da garganta, de pé e com as duas mãos a agarrar firmemente o microfone — a sorrir enquanto o cigarro, aceso, repousa entre os dedos da mão direita. Sempre meio excessivo, sempre sem meio termo, por isso também uma personagem tão inclassificável. E depois disto, o que virá, Post Malone?
O soul-funk dos HMB puxado a lustro pop
“Acho que o funk está na moda”, diria Héber Marques, para logo de seguida perguntar à multidão que tinha à frente: “Shall we funk?”. Já o concerto dos HMB no Parque da Bela Vista — o primeiro do dia no palco principal — ia adiantado quando o vocalista aproveitou para fazer um trocadilho, aludindo à semi-cabeça de cartaz (dividia o estatuto com o cantor e rapper Post Malone) Anitta.
O “funk” deles, os HMB, é diferente: não é o que nasceu no Rio alimentando-se do Miami bass, sendo antes devedor da tradição afro-americana que se impôs nos EUA. Por vezes, esse funk perpassa, cuidadosamente filtrado e amansado, para a música do coletivo português de pop e soul, que este domingo voltou a mostrar em Lisboa que sabe como fazer de um concerto uma celebração comunitária.
O “funk” e a “soul” dos HMB são funk e soul relativamente domesticados, algo moldados a uma ideia polida e açucarada de canção, mais Expensive Soul do que James Brown. O comboio de som nunca desgoverna, nunca se liberta inteiramente para fugir aos carris, e a festa parece pensada ao detalhe, cada momento uma exibição de alegria milimetricamente calculada para chegar ao coração de quem ouve. O groove, real, é puxado a lustro pop.
E foi exatamente o que o arranque de dia pedia. A ideia da organização revelou-se feliz: se o domingo era maioritariamente para os jovens, atentos à pop que vai dominando o mundo e as rádios atuais, quem estava no Parque da Bela Vista, estava para dançar e para injetar animação nos ouvidos. Os HMB conseguiram-no, com canções como “Não Me Leves a Mal”, “Paixão”, “Naptel Xulima”, “Dia D” (“com esta música apresentámo-nos ao grande público português”), a baladona “Peito”, “A Chapa Tá Quente”, “CDQP (Culpa de Quem Pariu)” e, mesmo a fechar, o êxito maior, “O Amor é Assim”.
A dada altura do concerto, Héber Marques apresentou “Festa Lá no Céu” dizendo: “A minha família sempre disse: festa só é festa se toda a gente vier junta”. No Parque da Bela Vista, a adesão à festa foi grande. Missão cumprida.
O concerto dos HMB pareceu ainda mais a sério se comparado com o que se seguiu no palco Mundo. É certo que se a atuação do cantor norte-americano Jason Derulo for analisada da perspetiva da eficácia, foi um êxito retumbante: a dança apoderou-se de milhares de corpos e fez do Parque da Bela Vista e do Rock in Rio — “a maior festa do mundo” segundo Derulo —, uma discoteca diurna.
Entre um R&B a pingar mel à anos 2000, uma batida de dança EDM hedonista, algum canto, algumas (muitas) vozes pré-gravadas e, pior do que isso, algum aparente e fajuto playback, Derulo passeou pelo palco, dançou com os seus bailarinos e bailarinas, “tocou” uma canção inédita e nova feita com Kodak Black, pediu “todos os telemóveis no céu” e proferiu a estranhíssima expressão “se querem ficar virais digam yeah“.
Ainda fez uma declaração de amor assolapado ao TikTok, rede social que vai surgindo também referida nas letras das canções, e despachou hits como “Wiggle” (gravada com Snoop Dogg) e “Savage Love”, também conhecida como “aquela da dança viral”. Serviu de banda sonora ao convívio e à dança — aparentemente, não era preciso mais.
Onde era preciso mais era no concerto de Mundo Segundo & Sam the Kid num dos palcos secundários do festival. às 22h15, a hora prevista, os dois históricos rappers portugueses entraram em palco e bem rimaram que ninguém ouviu: um problema de som deixou-os em silêncio e o concerto só seria retomado às 22h48, perto de meia hora depois. Problema? Dez minutos depois começava o concerto de Post Malone no palco principal. Ficou a queixa e a bicada de Sam the Kid: “Já nos ouvem? Pedimos imensa desculpa. Isto é inédito. Se calhar é sinal que devíamos estar no palco Mundo”.
Terminou assim mais uma edição do Rock in Rio (RiR) Lisboa, a primeira do festival de música português desde a Covid-19. Daqui a dois anos, em 2024, o RiR regressa ao Parque da Bela Vista.