As finais dos 200 metros superaram as melhores expetativas, com Shericka Jackson e Noah Lyles a fazerem duas das marcas mais rápidas de sempre. As estafetas dos 4×100 metros trouxeram a imprevisibilidade que faltava perante os triunfos surpresa de Canadá (masculinos) e EUA (femininos). O recorde mundial na vara de Armand Duplantis confirmou-se, o recorde mundial dos 100 metros barreiras nas meias-finais de Tobi Amusan foi a surpresa mais inesperada de todas. O leque de pontos altos dos Mundiais ao Ar Livre deste ano foi grande apesar das críticas pela falta de promoção do mesmo mas, no meio de tantas estrelas, houve uma que brilhou acima de todas. E era uma das mais novas nessa constelação: Sydney McLaughlin.

De um lado tinha a compatriota Dalilah Muhammad, campeã mundial em título, antiga campeã olímpica que descera a vice em Tóquio e ex-recordista da distância. Do outro estava Femke Bol, neerlandesa que era a única esperança europeia na luta pela vitória depois de ter ganha a Liga Diamante de 2021 e de ter ficado com o bronze nos Jogos. A norte-americana, que já tinha a marca mais rápida de sempre conseguida nos trials dos EUA (51,41) após quebrar a fasquia dos 52 segundos no ano passado e ser campeã olímpica com nova melhoria (51,46), parecia ter entrado num passeio. Mais: a marca feita nos 400 metros barreiras daria para ficar em sétimo lugar na final dos 400 metros livres deste Mundial. McLaughlin não ganhou, arrasou. E os 50,68 com que se sagrou campeã mundial abrem perspetiva de ameaça aos 50 segundos…

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Motivos de celebração não faltavam mas a norte-americana foi tudo menos exuberante. Aliás, quem não tivesse visto aquele show poderia pensar que não tinha sequer ganho medalha: sentada no chão, a olhar para o vazio, a tentar recuperar o fôlego para normalizar a respiração, a agradecer às adversárias que a cumprimentavam. Até mesmo quando a mascote da competição passou ao seu lado com um divertido cartaz que fazia alusão ao recorde mundial fez só um tímido sorriso – logo ela que se define como aspirante a “comediante” quando está entre família e amigos. Foi assim na pista, foi assim na zona mista. “Como vou agora celebrar? Tenho de perguntar ao meu treinador qual é o próximo objetivo, não quero festejar já sem saber que o trabalho está feito”, disse. Antes, todos lhe perguntavam o que se passava e se estava tudo bem. “Sim, sim, está tudo bem. Ainda continuo a assimilar o que fui capaz de fazer”, explicava a atleta.

McLaughlin, que fechou os Mundiais com mais uma medalha de ouro nos 4×400, quebrou todos os recordes desde 2014. Mais do que nunca, há uma nova menina querida no atletismo dos EUA a crescer.

Há uma história, no bom e no mau, que liga a atleta ao Hayward Field, onde decorreram os Mundiais de Eugene. Agora, bateu ali o recorde mundial. No mês anterior, tinha batido ali o recorde mundial. Em 2014, não teve oportunidade de bater nada ali nos Mundiais Sub-20. Razão? Como só tinha 14 anos, e mesmo com marca para isso, não foi selecionada para a prova devido às regras do World Athletics sobre a idade. Oito anos depois, com vitórias em tudo o havia para ganhar, fulminou o melhor registo numa final onde as segundas e terceiras classificadas tiveram o melhor tempo de sempre (Femke Bol, com 52,27, e Dalilah Muhammad, com 53,13). Aquelas 73 centésimas a menos no recorde mundial ficavam para a história.

Nascida em agosto de 1999 em Nova Jérsia, Sydney foi sempre também a melhor entre as melhores numa família de desportistas. O pai, Willie, chegou às meias-finais dos 400 metros dos Campeonatos Nacionais de 1984 que iam definir a entrada nos Jogos de Los Angeles; a mãe, Mary, corria na equipa dos rapazes na secundária de Cardinal O’Hara, em Nova Iorque – e como não havia equipa de atletismo quando conheceu o futuro marido no Manhattan College, foi treinadora da formação masculina. O irmão Taylor ganhou a medalha de prata nos 400 metros barreiras dos Mundiais Sub-20 de 2016 e qualificou-se para os Jogos do Rio de Janeiro, a irmã Morgan corre na Universidade de St. Peter’s. O irmão mais novo, Ryan, foi o quinto da família a ganhar o título de campeão regional em Nova Jérsia. “Todos os nossos filhos têm um grande talento mas a Sydney tem algo especial. Já víamos isso, era uma questão de tempo”, comentou o pai em 2014, quando a filha não foi autorizada a ir aos Mundiais Sub-20 pela idade.

Também tinha jeito para o basquetebol (e a altura ajudava nisso), nunca deixou o atletismo. Foi isso que motivou a chuva de convites quando estava no período de escolha de uma universidade. Decidiu-se por Kentucky mas ficou apenas um ano na equipa, passando a profissional logo em 2018 a troco de um contrato com a New Balance de 1,5 milhões de dólares por ano. E com uma outra curiosidade: é representada por uma empresa que não trabalha com outros atletas mas sim com estrelas de Hollywood (a William Morris Endeavor, grupo que na sua ramificação desportiva ficou responsável por encontrar possíveis parceiros do Benfica para os naming rights do Estádio da Luz e do Benfica Campus). Também aqui, soube ver mais à frente. E se é verdade que referiu por mais do que uma ocasião que não se define pelo que faz na pista, também não é aquilo que faz na pista que a define neste caminho até ao topo.

Católica praticante que começa sempre por agradecer a Deus todas as conquistas que soma, McLaughlin tem muito trabalho invisível até chegar onde se encontra hoje. Um deles passa pelo estudo minucioso com vídeos de treinos, provas e adversárias de pormenores de corrida como o passo final antes da barreira ou a cadência de passadas entre barreiras. Outro tem a ver com os sapatos, feitos em exclusivo para si com uma placa de fibra de carbono (que ajuda no impulso do salto e reduz o desgaste do impacto após a barreira). Foi também isso que lhe valeu novo recorde mundial que deixou a própria estupefacta sentada no chão, tanto tempo que a organização e os fotógrafos começaram a ficar nervosos pelos tempos do protocolo.

“O meu tempo foi verdadeiramente incrível e agora só me falta perceber que outras barreiras posso tentar superar. Sei que ainda vou ser mais rápida. Sim, é certo que são dez barreiras ao longo do percurso mas nós conseguimos correr rápido na mesma. Acho que ainda não consegui uma corrida totalmente limpa”, disse no final entre agradecimentos à família, à equipa a quem trabalha e até à AirBnB, que acolheu a família para estes Mundiais de Eugene. Fã de Allyson Felix (que defendeu de forma acérrima na polémica com a Nike por estar grávida), Sydney McLaughlin é ainda descrita como um exemplo pelo envolvimento na sociedade civil (foi voluntária depois do desastre provocado pelo furacão Sandy). Também em 2022, casou em maio com Andre Levrone Jr., antigo jogador de futebol americano que esteve três anos na NFL.

A própria figura de Sydney ajuda a cair no goto de qualquer adepto. Humilde mas com uma confiança que não tem limites, reservada mas adepta de fazer vídeos para as redes sociais e para o seu canal de Youtube, atenta a todos os pormenores para ser melhor mas com dificuldades em dizer não a fast food. Se a compatriota Dalilah Muhammad demorou a quebrar um recorde mundial de 16 anos, McLaughlin bateu por quatro ocasiões a melhor marca num ano, tirando já um segundo e meio à marca que havia em 2019 (52,16). E superar a barreira mítica dos 50 segundos parece tudo menos impossível.