Falar sobre as obras de arte que o arménio Calouste Sarkis Gulbenkian foi adquirindo ao longo da vida é sinónimo de uma viagem por vários mundos e épocas, “falemos de lugares como o Mediterrâneo, Médio Oriente e Ásia Central, de onde vêm antiguidades egípcias e tapetes persas; da Europa do Sul, rica em paisagens de Veneza registadas por Francesco Guardi; de França, com o mobiliário, a pintura e a ourivesaria dos séculos XVIII e XIX; ou do Norte da Europa, com tapeçarias, manuscritos iluminados e pintura, entre outros”, enumera o historiador Rui Ramos.
Apesar dessa diversidade, “podemos ver a coleção, acima de tudo, como a celebração de uma certa conceção da beleza e da técnica artística desenvolvida nesse mundo clássico à volta do Mediterrâneo, espaço que foi originalmente o do Império Romano na Antiguidade e do Império Otomano na época moderna”, pergunta o anfitrião do podcast Only the Best, uma parceria entre o Museu Calouste Gulbenkian e a Rádio Observador que vai para o ar a cada quinze dias, e que conta com a colaboração de João Carvalho Dias, diretor-adjunto do referido museu.
Existe “efetivamente um gosto que podemos associar à ideia do ‘belo absoluto’, com base na chamada matriz clássica oriunda do mundo mediterrânico”, começa por responder Carvalho Dias. No entanto, continua o especialista, “esse classicismo, não é mais do que um extraordinário fenómeno de fusão cultural que não se circunscreve à bacia do Mediterrâneo, e que se estende a uma geografia distante, que inclui os continentes europeu, africano e asiático. Julgo que a coleção reflete esses elementos de fusão, com origens muito longínquas, criando múltiplas camadas de interpretação.
Também por isso é possível “detetar elementos chineses num jarro de jade branco de Samarcanda (Ásia Central, século XV) ou verificar como os álbuns de botânica europeus influenciaram a representação floral nos tapetes da Índia mogol (século XVII). Isto para dizer que a cultura traz muitas camadas, suscita muitas questões e nem sempre temos todas as respostas”, refere o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Do velho continente para o mundo
“O espaço europeu, ou próximo da Europa, quando Gulbenkian nasceu e depois durante a sua vida, integrava, através de dominação imperial e de relações comerciais, muitos outros mundos”, refere Rui Ramos. Mas, em 1900, quando Gulbenkian tinha 31 anos, havia grandes impérios ultramarinos europeus, como o Britânico na África e na Ásia; o Francês, e o Holandês na atual Indonésia; e, claro, Português”.
Tendo em conta o panorama geopolítico da época, “podemos ver Gulbenkian, de certo modo, como um habitante deste mundo imperial, cidadão britânico e intermediário no recurso ao petróleo do Médio Oriente, que interessou cada vez mais à Europa?”, questiona o anfitrião do podcast Only the Best.
O tempo dos impérios “é aquele em que Gulbenkian viveu”, sublinha João Carvalho Dias. “Nascido no império otomano; com uma sólida matriz cultural arménia, com nacionalidade britânica, conselheiro comercial da Legação do Irão em Paris ou homem de negócios de âmbito internacional, Gulbenkian é um homem do mundo”, e as suas “viagens de não se circunscrevem à bacia do Mediterrâneo. Para isso, bastará recordar a viagem pela Transcaucásia, em 1888, que registou em livro, ou outras viagens que incluem visitas à Bélgica, a Holanda, Alemanha ou Áustria”, enumera.
Noutra perspetiva, “esses impérios e as relações comerciais à sua volta, criaram na Europa um gosto não só por bebidas e alimentos oriundos desses mundos, como por exemplo, o chá, mas pela arte, pela decoração, pelos estilos na altura considerados exóticos”, sublinha Rui Ramos, e, por exemplo, “no fim do século XIX, o Japão entra na moda no Ocidente”. Perante isso, “em que medida Gulbenkian foi sensível à arte do Extremo Oriente?”, pergunta o historiador.
As peças japonesas, “eram objetos irresistíveis para os colecionadores com as características de Gulbenkian, que os começou a reunir no início do século XX, e, falo da porcelana chinesa, das lacas e das estampas japonesas”, responde Carvalho Dias em forma de justificação para a paixão do colecionador arménio face às obras asiáticas, algo que viria a intensificar-se.
Dos leilões às peças monumentais
Esse especial interesse verifica-se em particular, como aponta Rui Ramos, no que toca à “cerâmica e porcelana chinesa, já que Gulbenkian adquire as peças mais importantes no leilão de coleções de outros colecionadores”.
Além disso, continua, “o mais interessante era o critério, que não de adquirir peças por serem “representativas” de uma arte, ou de um estilo, mas por serem belas em si. Isso significa que essa beleza está também muito associada a uma predileção de Gulbenkian pelo virtuosismo artístico, notório no caso das porcelanas chinesas ou nas caixas de laca japonesas?”.
No caso da porcelana chinesa, “as entradas na coleção são registadas a partir de 1907, mas continuam até 1947 (Gulbenkian tinha 78 anos)”, refere João Carvalho Dias. “Nos anos de 1920, Calouste adquire magníficas peças de céladon (vidrado verde), da dinastia Quing (1736-1795), com montagens contemporâneas, em bronze cinzelado dourado, de manufatura francesa”, especifica o especialista.
Já no caso da arte japonesa “é fácil entender a atração de Gulbenkian pelos requintados objetos em laca, ouro e prata, sejam eles inro (pequenas caixas divididas em secções, unidas por cordões de seda) ou caixas de escrita (uma espécie de escritório móvel)”, explica o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, acrescentando que “grande parte destes objetos foram adquiridos num leilão da Christie’s, em 1916, tendo como proveniência a coleção de Sir Trevor Lawrence, um baronete, cirurgião e colecionador de arte oriental”.
Rui Ramos refere ainda uma das peças mais impressionantes no referido conjunto oriundo do Extremo Oriente, “um biombo Coromandel, de origem chinesa, datado do fim do século XVII, composto de doze painéis de madeira, que fora adquirido em 1920”. Seria essa uma peça usada na casa da avenue de Iéna?
Na opinião de João Carvalho Dias, trata-se de “uma peça notável, desde logo pela sua escala, sendo que os seus 12 painéis de madeira revestidos a laca têm 2,83 metros de altura, e, ocupando 6,18 m de comprimento. Parece ter sido realizado como oferta para um dignitário local, quase de certeza um militar de alta patente”, e conjuga “a representação de lendas e contos populares chineses com cenas, na parte inferior, relacionadas com o alto dignitário militar”. E, apesar de, continua, “o biombo não ser visível nas fotografias disponíveis da casa da avenue d’Iéna, segundo registo de Marcelle Chanet (antiga colaboradora de Gulbenkian) encontrava-se numa sala contígua à biblioteca, no primeiro andar da referida morada”.
Vários continentes reunidos na coleção
O interesse pela criatividade asiática, e agora tendo como referência o Japão, fez com que Gulbenkian desenvolve-se um gosto particular pelas estampas e gravuras”, refere Rui Ramos, “tendo reunido uma vasta coleção da autoria de Kitagawa Utamaro, artista japonês do século XVIII, e “muitas delas são retratos de mulheres, que é um motivo muito apreciado por Gulbenkian”.
De facto, sublinha João Carvalho Dias, “as estampas japonesas têm temas variados: paisagens, pássaros, insetos, e o retrato feminino está presente na coleção, oferecendo uma visão muito rica do quotidiano em termos da história social e dos comportamentos. A representação da mulher é uma constante na coleção Gulbenkian e abarca todas as categorias artísticas, do desenho à pintura, da escultura às joias de René Lalique”.
O interesse por paragens longínquas, de diferentes culturas, fez com que o filantropo arménio tivesse investido em peças de vários quadrantes dos vários continentes, mas, por exemplo, “de África e ou América antes de Cristóvão Colombo, havia essa mesma curiosidade enquanto colecionador?”, pergunta o anfitrião do podcast Only the Best.
De facto, Gulbenkian “não foi sensível à arte africana ou à arte pré-colombiana a ponto de a colecionar”, responde Carvalho Dias. “No entanto, muitos continentes estão presentes na coleção, com particular foco para a Europa e a Ásia, sem excluir a África, que integra a arte do Egito Antigo”.
Depois desta contextualização geográfica, e tendo em conta a sua origem, “onde é que no Museu Calouste Gulbenkian podemos ver as obras de artes do Extremo Oriente de que falámos hoje?”, questiona Rui Ramos, sendo que João Carvalho Dias aponte como resposta a “Galeria dedicada à China e ao Japão no referido espaço”.
Na próxima sessão do podcast Only the Best, de regresso daqui a 15 dias, o tema será um momento fundamental da vida do arménio, no caso, “a sua vinda para Lisboa, em 1942, onde iria viver o resto dos seus dias e continuou a colecionar, e, sobretudo, a preocupar-se com a sua coleção”, revela Rui Ramos.