Numa Luanda fortemente policiada, com o exército em “prontidão combativa” até ao dia 20 de setembro, a medida mais concreta dedicada a um grupo específico de pessoas foi dirigida aos militares. No discurso da tomada de posse como Presidente de Angola para 2022-2027, João Lourenço fez esta quinta-feira muitas promessas, alguns elogios, vários agradecimentos  — e zero palavras para as eleições autárquicas — mas só às Forças Armadas de Angola garantiu uma especial atenção nos primeiros dias do novo mandato.

A referência aos militares surgiu na segunda parte do seu discurso de aproximadamente vinte minutos, depois de fazer uma alusão à importância da paz no país. “A defesa da nossa integridade territorial, da nossa soberania e da ordem pública interna é sagrada para um país como Angola que viveu décadas de conflito armado, alcançou a paz e a estabilidade há vinte anos e pretende preservá-las a todo custo”, disse.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a situação em Angola.

Mudou alguma coisa em Angola com as eleições?

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Perante uma audiência estimada de mais de 15 mil pessoas — número de cadeiras ocupadas segundo a TPA, televisão estatal — o recém empossado Chefe de Estado, com o colar presidencial ao pescoço e a respetiva medalha dourada na lapela, garantiu: “Encontraremos as melhores soluções de financiamento para o reequipamento e modernização das Forças Armadas Angolanas, para as colocar ao nível do prestígio granjeado ao longo dos tempos”. E logo a seguir concretizou:

“A formação contínua dos efetivos assim como a melhoria das condições de aquartelamento das tropas e dos seus salários, é algo a que nos dedicaremos logo nos primeiros dias da entrada em funcionamento do executivo”.

Angola. UNITA falta à investidura do PR mas deputados tomam posse sexta-feira

Numa cerimónia de investidura a que faltou o principal partido na oposição, a UNITA, que contesta a lisura do processo e os resultados eleitorais, João Lourenço começou por dizer que  “o povo angolano é o real e grande vencedor destas eleições”. Felicitou-o por ter revelado “patriotismo e elevado grau de tolerância e civismo nestas que já são consideradas as mais disputadas eleições gerais da história da jovem democracia angolana”.

Os angolanos, prosseguiu o Presidente no seu fato escuro com gravata lilás na camisa branca, “demonstraram ao mundo que em momentos cruciais sabem fazer as melhores opções e escolher com muita responsabilidade o futuro do seu país”. Ou seja “ao elegerem o MPLA e o seu candidato apostaram na continuidade como forma segura para garantir a paz, a estabilidade e o desenvolvimento económico e social do país”, congratulou-se.

Logo a seguir aos eleitores, estende as felicitações aos partidos e coligações de partidos políticos “pela sua participação nas eleições o que contribuiu para o fortalecimento da democracia”. E se Adalberto Costa Júnior, líder da UNITA, partido que elegeu 90 deputados, resultado recorde do partido, não ouviu estas palavras in loco, o mesmo não se pode dizer dos outros partidos com assento parlamentar. Os presidentes do PRS (Partido de Renovação Social), da histórica FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e do PH (Partido Humanista de Angola, que apresentou a primeira mulher candidata a Presidente da República) estiveram sentados nas cadeiras bordeaux com contornos dourados.

“Particular atenção ao setor social” e sem esquecer os jovens, base de apoio da UNITA

Depois de, à semelhança do que fez em 2017, na tomada de posse do seu primeiro mandato, se ter afirmado o “Presidente de todos os angolanos”, uma frase muito repetida por presidentes recém eleitos de todo o mundo, João Lourenço afirmou o seu empenho na governação em prol do bem do país e da sua população.

“Dedicarei todas as minhas forças e atenção na busca permanente das melhores soluções para os principais problemas do país. Particular atenção será prestada ao setor social no que concerne ao bem-estar das  populações”, indicou.

Refere a seguir que continuará a “investir no ser humano como principal agente do desenvolvimento, na sua educação e formação, nos cuidados de saúde, na habitação condigna”, bem como no acesso à água potável e energia eléctrica, no saneamento básico“, três das reivindicações mais ouvidas nas ruas de Luanda.

Entre os objetivos do seu mandato está o continuar a trabalhar em políticas “e boas práticas para incentivar  e promover o setor privado da economia” de forma a “aumentar a oferta de bens e serviços de produção nacional, aumentar as exportações e criar cada vez mais postos de trabalho para os angolanos, sobretudo para os mais jovens”.

Mais de 60% da população angolana tem menos de 40 anos e segundo os sindicatos 60% dos que estão em idade produtiva estão desempregados. Além disso, são tidos pelos analistas políticos como a grande base de apoio do maior partido da oposição, a UNITA, sendo-lhes atribuída a responsabilidade pela vitória esmagadora do partido do Galo Negro na capital de Angola. Não admira pois que sejam referidos mais duas vezes no discurso de tomada de posse.

Surgem nas palavras lidas de João Lourenço quando assegurou “particular atenção à formação académica e técnico-profissional dos jovens, para estarem melhor preparados a enfrentar as oportunidades que surgem no mercado de trabalho, cada vez mais exigente e competitivo de hoje”.

E já tinham aparecido quando, depois de falar da proteção das minorias (os mais vulneráveis, os idosos, as crianças e os menos favorecidos), promete que “o cidadão em geral, o trabalhador e o jovem em particular, continuam no centro” das suas atenções. “Trabalharemos sempre no sentido do fortalecimento constante da nossa economia, para fazer dela  uma economia que possa garantir ao trabalhador um salário condigno e  um poder de compra que seja compatível com a capacidade de aquisição dos bens essenciais de consumo da cesta básica”. Este é um dos momentos em que os aplausos se fazem ouvir com mais força durante o discurso.

No rol das suas intenções, também figura a implantação de vários empreendimentos em  Cabinda, a província mais referida a par de Luanda (juntamente com o Zaire, foram as conquistadas pela UNITA). João Lourenço afirmou que vai “dar continuidade e concluir” infraestruturas “como o porto de águas profundas do Caio em Cabinda, os aeroportos de Cabinda, de Mbanza Congo e o Internacional António Agostinho Neto em Luanda, as refinarias de petróleo de Cabinda, do Soyo e do Lobito”, por exemplo.

Mas também se comprometeu “a construir sistemas de captação, tratamento e distribuição de água do BITA e da Quilonga para resolver a falta de água de Luanda, assim  como o grande programa de  construção dos canais e barragens, albufeiras de armazenamento de água,  no âmbito da luta contra os efeitos da seca no sul de Angola”.

Do leque de infraestruturas fazem ainda parte “o Polo de Desenvolvimento da Barra do Dande, a barragem hidro-elétrica de Caculo Cabaça, a interligação dos sistemas norte-centro-sul e leste da rede nacional de eletricidade, a construção dos parques fotovoltaicos de energia para grande parte do país”. E, claro não faltou a referência a mais hospitais, escolas e estradas e à construção de “infra-estruturas sociais de proximidade em todos os municípios do país”.

Mas, contrariamente ao que sucedeu no seu discurso em 2017, nem uma palavra sobre a reforma do Estado a criação das autarquias e as respetivas eleições, grande anseio da sociedade civil e da UNITA e outros partidos. Sobre o poder local apenas disse isto: “Continuaremos com a governação local no formato estabelecido, onde procuraremos, nas nossas deslocações ao interior, a falar com as autoridades, mas também com as diferentes franjas representativas da sociedade de cada província”.

 Combate à corrupção e impunidade é para continuar

Depois de reafirmar o seu compromisso de implantação de políticas para os setores social e económico, que trarão mais emprego, o Presidente tocou num assunto que tem sido muito criticado por ativistas e franjas da sociedade civil, para além da UNITA: o não respeito pelos direitos humanos. João Lourenço frisa aqui um outro “compromisso” que “é sagrado”: o de “respeitar a Constituição e as leis, sobretudo no que diz respeito aos direitos e liberdades fundamentais dos angolanos”.

A igualdade do género não faltou no discurso, com João Lourenço a defender “a igualdade de oportunidades e promoção da mulher nos mais altos cargos do Estado, nos cargos públicos e de liderança em diferentes setores da sociedade angolana”. Já tinha dado o exemplo. Minutos depois da sua investidura como Presidente, tinha sido também empossada a nova vice-Presidente de Angola, Esperança da Costa, a primeira mulher no país a ocupar esse cargo.

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E não se pense que apesar das invetivas que tem recebido na luta contra a corrupção João Lourenço deixou cair o tema. Pelo contrário. Disse que “a sociedade angolana e os competentes órgãos de justiça vão prosseguir com o seu trabalho de prevenção e luta contra a corrupção e a impunidade que ainda prevalece, infelizmente”. E apelou: “Vamos todos trabalhar na educação das pessoas para a necessidade da mudança do paradigma, de vícios, más práticas e maus comportamentos instalados e enraizados há anos”.

Contra a ideia de que o governo não é sujeito a controle da Assembleia Nacional e governa sozinho, assegura que vai governar contando “com a participação e escrutínio de todos, dos deputados eleitos da Assembleia Nacional, das organizações não governamentais, dos sindicatos, das associações profissionais” e empresariais do setor privad, dos “académicos, igrejas reconhecidas e media”.

De fora das prioridades para o mandato não ficou o clima, comprometendo-se “com o mundo” a perseguir as metas climáticas, procurando reduzir os efeitos de estufa, desenvolvendo iniciativas  na energia renovável, e por outro lado, na defesa das espécies em risco em Angola.

No seu horizonte governativo estão também “programas de educação ambiental” com vista a desencorajar a desflorestação e as queimadas em determinadas circunstâncias, “com ações concretas de redução do consumo dos derivados do petróleo” e com investimento “em fontes limpas de produção de energia como barragens, parques fotovoltaicos e projetos de hidrogénio verde”.

Rússia deve dar o primeiro passo para pôr fim à guerra na Ucrânia

Perante 12 chefes de Estado (e outros representantes, ao todo estavam 50 estados estrangeiros presentes) João Lourenço dedicou alguns minutos a falar da política externa angolana onde inseriu o tema da guerra na Ucrânia. Angola, que tem fortes relações históricas com a Rússia desde o período da luta pela libertação de Angola de Portugal, que manteve mesmo depois do fim da União Soviética, foi um dos 35 países que se abstiveram na votação da Assembleia das Nações Unidas da resolução que condenou a invasão russa da Ucrânia.

João Lourenço já em junho em Portugal, e em abril, numa conversa telefónica com Vladimir Putin, tinha pedido cessar-fogo imediato e um regresso às negociações.

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Agora, insiste no mesmo, pondo o ónus da iniciativa na Rússia e aproveitando para dar um recado também às Nações Unidas. “Preocupa-nos o conflito na região do Tigray na Etiópia, cuja situação humanitária se agrava a cada dia,  porque  foi simplesmente esquecida com o eclodir de um novo  conflito na Europa. É hora de o mundo começar a encarar a necessidade de salvar e proteger a vida humana por igual, sem preconceitos de ordem racial, religiosa ou de qualquer outro tipo”, avisou antes de se focar na ONU:

As Nações Unidas devem ser o guia regulador do equilíbrio necessário na ação das organizações humanitárias internacionais, para que não se concentrem as atenções apenas no atendimento a um tipo de necessitados, em função da sua origem. Os refugiados da Síria, do Iémen, dos países do  Sahel, da Somália, do Tigray e de outras  partes do mundo, merecem igualmente a atenção das agências internacionais humanitárias”.

A guerra “não é solução que se recomende” para resolver conflitos entre estados soberanos, frisou. A guerra na Ucrânia já causou muitos mortos, refugiados e danos de património e de infraestruturas com “implicações na paz e na economia mundial” lembrou. “A República de Angola tem sempre defendido a importância do recurso ao diálogo e à resolução pacífica dos conflitos, primando pelo respeito inequívoco do Direito Internaciona”, salientou, antes de apelar:

Nesta conformidade e tendo em conta a necessidade de se evitar o escalar do conflito, consideramos importante que as autoridades russas tomem a iniciativa de pôr fim ao conflito, criando assim um melhor ambiente para se negociar uma nova arquitetura de paz para a Europa e abrir o  caminho para a tão almejada e necessária  reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.”

“Portugueses, não se confundam”, pede a TPA. “Marcelo não é vaiado, é muito querido”

Antes de terminar o seu discurso na estrutura montada na Praça da República, aos pés do mausoléu onde está o corpo de Agostinho Neto, que tem como vizinho o jazigo de José Eduardo dos Santos, e virado para o Atlântico, João Lourenço fez uma breve referência aos dois antigos Presidentes de Angola:

“Esta cerimónia solene de investidura do Presidente da República para um novo mandato acontece alguns dias depois de os angolanos e o mundo terem acompanhado à sua última morada e desta forma se despedido do Arquiteto da Paz, o Presidente José Eduardo dos Santos.  Acontece também a escassos dias da data em que o povo angolano e o mundo vão comemorar, no dia 17 de Setembro, o Centenário do nascimento do Fundador da Nação angolana, o Poeta Maior, o Presidente António Agostinho Neto.”

Depois, agradece aos Chefes de Estado e de governo e aos convidados angolanos a honra da sua presença, prometendo retribuir com “empenho e dedicação ao trabalho, a confiança reiterada dos eleitores”.

Entres 12 Presidentes estavam todos os dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), com exceção do de Moçambique, e Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente português era o único Chefe de Estado não africano e foi dos mais aplaudidos e assobiado quando o mestre de cerimónias o apresentou. Mas não se pense que foi vaiado. Meia hora antes o apresentador da TPA tinha avisado os portugueses.

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“Portugueses, não se confundam”, disse. “Quando o mestre de cerimónias apresentar Marcelo Rebelo de Sousa”, a reação da multidão não será “de vaia mas sim de aclamação”. É que, continuou, em 2017, quando o Presidente português foi mencionado e as pessoas fizeram um ‘êzouê’”, em “Lisboa disseram que tinha sido vaiado, mas não, foi dos mais aclamados”, pois é “muito querido em Angola”.

Marcelo Rebelo de Sousa, que antes da cerimónia ainda foi dar um mergulho à praia da Ilha de Luanda, serviu aliás para o apresentador referir que não há qualquer instabilidade em Angola “como se disse”, pois o Presidente português andou “a passear pela cidade, sem problema algum, sem escolta”.

Esqueceu-se foi de referir o forte dispositivo policial e militar que está nas ruas até dia 20 deste mês, com o exército em “prontidão combativa elevada” como anunciou na altura o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas. Ou as denúncias que dão conta de ativistas detidos em casa e levados para parte incerta, alguns sem mandato judicial, e as palavras do comissário-geral da polícia angolana, na terça-feira, de pois de admitir que as forças de segurança têm sido “implacáveis” para com os que pretendem organizar manifestações: “Nós não vamos dar espaço a estas pessoas, porque qualquer país tem lei. E quem o fizer é detido para ser responsabilizado criminalmente”, avisou.

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A verdade é que, contrariamente a algumas expectativas, o dia da tomada de posse do Presidente não foi marcado por protestos ou manifestações.