Bábi Iar é um documento que sabe a romance. O tema, por si só, é um colosso: o massacre de Bábi Iar, uma ravina em Kiev, capital da Ucrânia. A vida que ali se levava levou um abalo sísmico, já que o lugar foi palco de um dos maiores massacres de judeus da União Soviética pelas mãos das tropas nazis durante a segunda grande guerra. Entre 29 e 30 de Setembro de 1941, morreram na ravina dezenas de milhares de judeus, sendo este um dos maiores assassinatos em massa do Holocausto.

Foi à memória que Anatóli Kuznetsov foi buscar este livro. Nascido em Kiev em 1929, filho de pai russo e mãe ucraniana, o autor começou a registar o que testemunhava sobre o massacre de Bábi Iar aos 14 anos. Quando as tropas nazis conquistaram a cidade ucraniana em 1941, o povo dividiu-se. Uns fascinavam-se com o requinte da farda alemã, outros esperavam a reconquista do exército soviético.

As tropas nazis haviam invadido a URSS em Junho de 1941 e Kiev caiu nas mãos alemãs após 45 dias de batalha. A 19 de Setembro, estava a ocupação firmada – e, dias depois, 700 pacientes de um hospital psiquiátrico eram fuzilados. A 28 de Setembro, foi afixado um aviso por Kiev, pedindo aos judeus lá residentes que comparecessem na esquina entre as ruas Melnyk e Dokterivsky. A ameaça estava lá claríssima: “Aqueles que não comparecerem serão fuzilados. Aqueles que entrarem nas casas evacuadas por judeus e roubarem pertences dessas casas serão fuzilados.” Perante a ameaça clara, a dúvida ainda imperava. Os judeus, por exemplo, achavam que, chegando à ravina, iriam de lá sair em comboios. É chocante, à luz do que se sabe, ver a confusão:

Tudo isto significava que os judeus iam ser despachados de comboio. Mas para onde? Seria mesmo para a Palestina, como o avô sugerira?

Mas isto seria muito cruel na mesma: expulsar milhares de pessoas à força dos lugares onde nasceram e transportá-las para um lugar onde nada tinham – quantos ficariam doentes ou morreriam no caminho? E tudo isso porque alguns tinham sido incendiários?” [p. 100]

Isto vinha no seguimento de uma acusação feita pelas tropas nazis. Inventada para encontrar um inimigo, apontava um grupo de judeus como responsáveis por um incêndio em Krechiátik, uma rua em Kiev. Mas o que importa neste excerto, para além do olhar de uma criança, é a inocência que exprime e que, no livro, se nota que não é só pensamento infantil. Aliás, mesmo os judeus, adultos, só tarde demais conseguiam perceber que avançavam para o matadouro. Em multidões, quando ouviam as metralhadoras que dizimavam os grupos da frente, já não conseguiam escapar. Esta inocência fica clara no seguinte trecho, em que se vê a implausibilidade de tudo aquilo estar a acontecer:

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Embora não soubesse ainda o que verdadeiramente se passava, o seu coração dizia-lhe que aquilo seria tudo menos uma evacuação de civis. Sim, tudo menos isso.

O que lhe parecia mais estranho era aquele matraquear intermitente de metralhadoras nas proximidades. Não podia ainda conceber que estivessem a fuzilar pessoas. Em primeiro lugar, por serem tantas. Coisas assim não acontecem. E depois – porque haviam de o fazer?” [p. 109]

Com 12 anos, Anatóli Kutznetsov viu a discórdia dentro da própria família, a braços com a coetaneidade de um dos mais monstruosos crimes do século XX. Sem distância, sem perspectiva e sem informação, os nativos acreditavam até na benevolência das tropas alemãs, assistindo o leitor a uma espécie de admiração por uma entidade colectiva e física que adquire respeito por via da ideia de uma superioridade civilizacional, já que o físico alemão e a cultura alemã apareciam como fonte de razão. De início, e na posição confortável de quem já conhece o desfecho, de quem já soube e mais que soube as intenções das tropas alemãs, é com choque que se vê a credulidade de quem as vê chegar pela primeira vez. Temos o exemplo do avô do autor, que serve para explicar “como um homem pode ansiar pela vinda de Hitler” (p. 48). Fiódor Vlássovitch Semerik odiava o regime soviético, que o condenara à fome tantas vezes e, assumindo que nada poderia ser pior do que Lenine e o que deixara, ansiava pela libertação alemã. Lenine estava então morto e Fiódor nem o nome lhe suportava, julgando que todos os “problemas eram obra de Lenine, que Lenine tinha governado a Rússia como se estivesse a jogar à roleta, tivesse perdido tudo e depois partido e morrido” (p. 48). Descrente em qualquer palavra de bolcheviques, terá chegado a uma fome ímpar com a colectivização forçada da agricultura. Esta vivência e esta memória implicavam a ideia de que qualquer outra coisa seria não só aceitável como bem-vinda. Qualquer outra coisa seria libertação. E Hitler aparecia como outra coisa qualquer.


Título: “Bábi Iar”
Autor: Anatóli Kuznetsov
Editora: Livros do Brasil

Tradução: Jorge Rosa
Páginas: 488

Ainda assim, a violência que os nazis levaram era tão grande que a esperança se desfez depressa. As fardas dos alemães deixaram de encantar, as histórias de encantar passaram a ser só histórias. Kutznetsov parte do momento da dúvida para entregar quase 500 páginas de uma descrição vívida do horror. E que horror: as valas comuns abertas, os disparos a soar no ar aos molhos, o fumo a dominar o céu, os que podiam a tentar fugir – uns eram ajudados, outros eram denunciados com frieza e desumanidade. Os casos de denúncias a sangue-frio parecem tão violentos quanto a violência em si, por trazerem uma lavagem de mãos que parece anular a hipótese de redenção humana. Veja-se o excerto:

Era uma mulher russa que vivia sozinha numa quinta coletiva, trabalhando na vacaria.

Tinha visto o rapaz a correr para casa. Sobressaltada, ouviu a história dele, serviu-lhe um jarro de leite e disse-lhe para ficar quieto e para não sair para não ser visto, e depois foi à polícia e denunciou-o. E mais, quando regressou vigiou-o até os alemães chegarem com a carroça.” [p. 105]

E esta história, dentro do capítulo, acaba aqui. Em poucas frases, Kutznetsov escancara o horror. Não tem de recorrer à explicitação do sentimento, porque lhe basta abrir as portas para o que viu. E, aqui, convém acrescentar que o rapaz que se julgava protegido e foi denunciado era uma criança de 14 anos.

Da chacina, não sobreviveram os números reais dos mortos, embora previsões apontem para mais de cem mil pessoas ali tombadas, incluindo 33 mil judeus em cerca de 48 horas. Durante décadas, o segredo refulgiu na sombra, oculto por alemães e russos. Daí, aliás, que os escritos de Kutznetsov tivessem ficado escondidos, já que o surto de anti-semitismo que acometeu a URSS, aliado à proibição de se referir Babi Iár, deixariam a cabeça do autor a prémio, caso publicasse o que hoje a Livros do Brasil traz a Portugal. O manuscrito original havia sido apresentado ao editor da revista Iúnost, que o devolvera de imediato, advertindo o autor de que deveria remover toda “a tralha antissoviética” (p. 19). Kutznetsov rasurou partes consideráveis dos capítulos sobre a Krechiátik, a destruição do mosteiro e outros, apresentando ao editor uma versão mais branda.

O documento chegaria a público sem cortes, e até com acréscimos e melhorias posteriores, em 1969, altura em que o autor vivia em Londres, e constitui um poderoso testemunho. Para além do cenário horrendo, temos uma prosa que vai directa às coisas, e ainda o olhar abismado de uma criança a ver a guerra.

É um documento, mas tudo sabe a romance. Não há o registo frio e distante da História, antes a vivência de um massacre impactante e inesquecível. Com este registo na primeira mão, Kutznetsov traz ao leitor a vida real das pessoas cujas humanidade e individualidade foram sonegadas, sendo possível a quem lê ver os rostos individualizados e algumas das pessoas concretas que padeceram ante uma acção cega. Ao estarmos na casa de quem viu isto acontecer, ao vermos a fuga deste ou daquele, ao darmos um nome ao desespero, ao invés de vermos diminuir, vemos aumentar a incomensurabilidade do crime. E é particularmente chocante que esse crime, a quem se habituou a ele, saiba a tão pouco. Logo no início do livro, o autor conta a história do momento em que ele e um amigo, após a expulsão das tropas alemãs de Kiev, foram à ravina. Perguntou a um velho: “Foi aqui que fuzilaram os judeus ou foi mais para a frente?”. A resposta foi indiferença a sério, ou incapacidade de entender a condição particular dos judeus durante uma guerra em que o anti-semitismo de Hitler disparava e gaseava: “E quantos russos mataram aqui, e ucranianos, e outras nacionalidades?” (p. 25).

Anatóli Kuznetsov deixou-nos um documento poderoso. Aqui temos os fios da História e os pontos da vida. Por muito que falar em milhares de pessoas mortas horrorize, a empatia que a escrita literária traz permite um vínculo emocional inesquecível. Foi esse vínculo que o autor soube trazer, numa prosa que dura, num texto que vicia, num horror que se adensa.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia