O momento era para inaugurar os Paços do Concelho da Trofa, município criado em 1998, depois de longa luta com Santo Tirso (e do PS com o PSD), mas perante uma plateia recheada de políticos do passado, presente e eventual futuro, o Presidente da República não resistiu a uma intervenção cheia de recados e picardias a quem nem Marques Mendes, que batizou de “tio da Trofa”, escapou.
A primeira vítima das palavras presidenciais foi a ministra da Coesão para quem Marcelo Rebelo de Sousa tinha uma mensagem guardada há uns tempos (o discurso pode ser visto na íntegra aqui). Em outubro, Ana Abrunhosa emocionou-se no Parlamento, quando foi confrontada com o caso da atribuição de fundos comunitários à empresa do seu marido (noticiada pelo Observador) e agora estava ali na primeira fila das comemorações da Trofa, à mercê do que Marcelo tinha para lhe dizer. “Quando se aceitam funções políticas é para o bem e para o mal. Não somos obrigados a aceitar, sabemos que são difíceis e sujeitas ao controlo e escrutínio crescentes”, “há dias bons e maus” e até contabilizou que “por dois dias felizes há dez infelizes”.
Quanto ao dia em que estavam, da inauguração trofense, Marcelo coloca-o sem rodeios no lote dos “super felizes”, aproveitando para dar logo à ministra o exemplo do que é mesmo um “dia super infeliz”: “Para si é o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos não é a que deveria ser e nesse caso não a perdoo”.
A plateia, onde estava o líder do PSD Luís Montenegro sentado perto da ministra, ria-se com vontade, mas Ana Abrunhosa nem por isso. Foi acenando com a cabeça em sinal de compromisso enquanto o Presidente concluía o raciocínio e dizia esperar que “esse dia nunca chegue”, prometendo “estar atento, para o caso de chegar”. O recado estava dado e registado pela ministra.
Depois, Marcelo seguiu numa desfiar de memórias do tempo em que era líder do PSD e teve um pacote de acordos com o PS em mãos, onde se incluía a revisão constitucional e a viabilização de três orçamentos do Governo de António Guterres pela estabilidade do país na entrada do euro. No meio, os dois partidos desentendiam-se na regionalização e também no assunto-Trofa que acabou por ir sendo adiado, perante a impaciência do então “fogoso” líder parlamentar da oposição, Luís Marques Mendes.
A adjetivação é de autoria presidencial, com Marcelo a não resistir (mais uma vez) e a dizer que Mendes continua “fogoso” como nessa altura e “tudo indica que continuará nos próximos anos”. Mais uma risada no auditório e outra maior ainda quando Marcelo contou a longa negociação para a passagem da Trofa a concelho e os equilíbrios políticos que isso exigiu. Lembrando também a persistência de Mendes sobre o tema: “Nunca percebi bem o que Marques Mendes tem com a Trofa… é uma obstinação só similar a outra que lhe aparece agora de âmbito diverso”.
Sem dizer está lá o horizonte da sua sucessão em Belém e a eventual corrida presidencial de Marques Mendes em todas as letras. E a plateia percebeu porque riu com Marcelo nesta tirada concreta. “Foi dos problemas mais complicados” mas “terminou bem”, gracejou ainda sobre a questão da Trofa, admitindo que seria um dos maiores capítulos de um livro de memórias sobre a sua vida política. Mas aqui não há esperança: “Eu não posso escrever memórias.” Para Mendes pediu: “Dêem-lhe o título de tio da Trofa que ele merece por aquilo que incomodou”.
No final, mais de 20 anos depois, Marcelo notou a ironia de estarem ali todos a comemorar o concelho, incluindo “a ministra do partido que não queria criar o concelho”. “As voltas que o mundo dá…”, ironizou sobre Abrunhosa.
Falou também dos seus amigos políticos, sobretudo de António Guterres, confidenciando que este lhe disse um dia que para chegar a primeiro-ministro “só tinha de não fazer nada. Se fizeres muito não chegas”. “Eu não segui o conselho e, de facto, nunca fui primeiro-ministro e tive de esperar para, por mero acaso, exercer as funções” de Presidente da República. Coisa que faz com “paixão”, garantiu, mas não tanto como quando foi autarca. “Foram quase 20 anos e foram os mais felizes da minha vida”.
“Não comparo a felicidade de ser Presidente com a felicidade de ser autarca porque é ainda mais próximo do povo. O Presidente faz os impossíveis para ser próximo do povo, quero deixar esse legado ao meu sucessor é uma espécie de encargo que deixo e que lhe transmitirei no dia 9 de março de 2026”, prometeu.
Não terminou sem uma achega sobre a democracia, que teme que em Portugal tenha envelhecido rapidamente. Mas considera-a “irreversível. Não há espaços para regressos a ditaduras mais ou menos ostensivas ou escondidas. Não há. É o que no Grândola se diz ‘o povo é quem mais ordena’, é que ordena mesmo e aqui na Trofa ordenou e ordena”, rematou.
No final, já depois do discurso, ainda foi confrontado pelos jornalistas (mais uma vez) sobre a revisão constitucional. O PSD já disse que quer avançar, e Marcelo voltou a recusar comentar. Mas diz que nas alterações ao Texto Fundamental que venham a ser feitas, convém “ter tudo bem certinho” na emergência sanitária.
“Eu não tive problemas de consciência quanto ao regime do Estado de Emergência, mas esperemos que não haja mais pandemias. Mas se houver é bom ter tudo certinho porque o Estado de Emergência foi adaptado para uma emergência, mas não foi pensado para isso”, disse Marcelo Rebelo de Sousa citado pela Lusa. E outro exemplo que deu foi o da lei dos metadados.