“Meu nome é Gal”, apresenta-se a cantora, entrada galante, carpete vermelha estendida pelo orquestrador Rogério Duprat. “E desejo me corresponder/ Com um rapaz que seja o tal”. O naipe de cordas é fintado pelo molejo das ruas, Jards Macalé no violão, e a cantora segue firme. “Meu nome é Gal”, repete, no seu primeiro disco a solo. “E não faz mal/ Que ele não seja branco, não tenha cultura/ De qualquer altura, eu amo igual”. Lanny Gordin desengatilha a guitarra, uma razia elétrica dispara distorção; a voz continua, agora berra, gargalha, ruge: “Meu nome é Gaaaaaal”. E na presença desta criatura inclassificável, por muito que se apresente, a questão persiste: Quem era Gal Costa?

Após a morte de Gal Costa (a 9 de novembro), uma das principais vozes da língua portuguesa, o momento de tristeza antecedeu a meditação — como definir uma cantora a tal ponto confortável na elegância da Bossa Nova, como no desmazelo da canção mais marginal brasileira? Uma cantora de aprumo clássico, timbre harmonioso e, simultaneamente, uma ícone da contracultura, opositora da Ditadura Militar, uma diva da comunidade LGBT. A elegia tem seguido pela caricatura, a presa é fácil e as pistas estão pelas canções: a Gal-tudo-legal, no cume de Ipanema com o pessoal da pesada, um barato total. Ou melhor, a baby encantadora de serpentes, cabelo solto ao vento, corpo moreno, a flor de maracujá. E quando o sol se põe, é a Gal-fatal, de coração vagabundo pela madrugada, a eterna solteira que ama a todos igual, que tanto ri como chora:

“Dessa janela sozinha
Olhar a cidade me acalma
Estrela vulgar a vagar
Rio e também posso chorar
E também posso chorar”

A resposta está algures nas entrelinhas, do fatal ao legal, Gal Costa foi uma figura incontornável das últimas cinco décadas de música brasileira, e o seu legado suplanta qualquer definição de carácter. Na extensa discografia em nome próprio, o ponto de partida foi a meias com Caetano Veloso, “Domingo”, e logo depois, uma metamorfose integral, numa época particularmente atormentada: 1969. Neste ano, a jovem descrita como um “João Gilberto de saias”, de voz afinadinha e modos afáveis, que partiu da Bahia para o Rio de Janeiro às costas dos amigos talentosos, estava abandonada num campo de batalha, entre os escombros da Tropicália. Caetano Veloso e Gilberto Gil montaram um imenso carnaval, atearam-lhe fogo, e a Ditadura Militar tratou do resto: a prisão e o exílio dos dois músicos baianos. Pela primeira vez, manifesta-se a questão: Quem é Gal Costa?

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A voz afinadinha era a marca registada de Nara Leão, Maria Bethânia meteu o Nordeste inteiro no bolso, e a televisão era o recreio de Elis Regina. Resoluta, Gal Costa assumiu as dores da canção marginal, resgatou as orquestrações impressionistas de Rogério Duprat, pegou nas canções de amigos e sozinha reergueu a Tropicália. O álbum de estreia a solo, Gal, é um pesadelo delirante, sem motivos de festa, sob uma ditadura que institucionalizou a perseguição aos artistas com o hediondo “Ato Institucional Número 5” — “Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”, cantou destemida no ano em que foi implementada a lei. Nos dois álbuns seguintes, Gal Costa e Legal, a cantora persevera às margens da música popular, uma heroína da contracultura com ginga, uma Janis Joplin com anca de Jorge Ben, especializada em versões de uma maleabilidade desconcertante.

Assunto resolvido, Gal Costa é a cantora underground do rock brasileiro, certo? Um ano depois, imaginem o cenário: noite quente de Copacabana, no centro do palco está a suposta heroína marginal, despida de guitarras, somente de violão e voz desamparada. “Meu coração não se cansa/ De ter esperança/ De um dia ser tudo o que quer”. Que romantismo meloso, coração que corre por gosto não cansa, de seguida, aquela canção do Roberto: “Sua estupidez não lhe deixa ver/ Que eu te amo”. O silêncio entre os uivos é aterrador, não há dúvida, afinal Gal Costa sempre foi a predestinada voz de emoções arrebatadoras, agora revigorada pela melancolia opressora da ditadura. E a meio caminho de FA-TAL, o icónico álbum ao vivo e a obra-prima desta discografia, começa “Vapor Barato”, o portal de nove minutos que marca um antes e depois na carreira de Gal Costa. “Não se assuste pessoa”, avisa, à bruta, hard rock requebrado, a arrastar todas as anteriores canções meigas com sujidade, lasciva e cólera.

[“Vapor Barato ao vivo”:]

Os concertos no Teatro Tereza Raquel, em 1971, dirigidos pelo poeta e artista Waly Salomão, expressaram em palco a última metamorfose de Gal Costa: a sensual opositora da Ditadura Militar. A diva rodeou-se de súditos no areal de Ipanema, nas palavras de Jards Macalé, “um território livre para tomar ácido e trepar o diabo”, em desafio direto aos costumes conservadores que governavam o Brasil. Os concertos e o álbum FA-TAL eternizaram o mito de Gal Costa, mas seria nos álbuns seguintes que se sedimentou a identidade da cantora: uma intérprete exímia da canção brasileira. Ao longo da década de setenta, repete uma receita rigorosa: seleciona um produtor com personalidade, seja um Gilberto Gil ou Caetano Veloso, e rodeia-se pelos melhores instrumentistas do país, como Dominguinhos, Chacal, ou Chico Batera. A natural leveza de Gal Costa, cada vez mais adaptada a qualquer terreno, e a minúcia das produções, conduzem a uma sequência extraordinária: Índia, Cantar, Gal Canta Caymmi e Caras e Bocas. A influência destes álbuns conserva-se essencial à música brasileira, basta ouvir qualquer canção de Tim Bernardes — no refrão de de “O Bilhete”, por exemplo, é a mesma melodia de “Negro Amor”.

Hoje, o prestígio de Gal Costa está nos álbuns do início da década de setenta, mas a discografia não ficou por ali, e não se assustem pessoas se, mais geração menos geração, comecemos a louvar a transformação seguinte da cantora, há quem diga a sua persona mais confortável: a estrela pop. No final da década de setenta, os álbuns reluzentes Água Viva e Gal Tropical abriram caminho para, finalmente, uma época da venda de discos em massa, seguida da alegria contagiante dos oitenta, de “Azul” a “Vaca Profana”. Uma cantora determinada, de voz tamanha:

“Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto não posso parar
Por isso essa voz tamanha”

A força estranha de Gal Costa era a sua espontaneidade. Se permanece inclassificável, sem um retrato estanque no tempo, é por nunca ter cedido a qualquer rótulo preconcebido, da Bossa ao autotune, o fio condutor nesta extraordinária carreira foi o seu próprio instinto. O mistério de Gal Costa sobrevive à sua morte, é uma canção que não envelhece.

“Eu vi muitos cabelos brancos
Na fronte do artista
O tempo não para e no entant
Ele nunca envelhece”