Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Como se não bastasse tanta política a envolver o Mundial, quis o destino que os 63 jogos que ainda sobram para fazer esquecer o primeiro fosse entre as duas seleções com mais foco em problemáticas não relacionadas com o desporto. Por razões diferentes, é certo, mas aquelas que mais têm falado ou sido faladas por variados coisas que não aquilo que deveria apenas ser: futebol. E foi assim também que o dia começou, neste caso com mais uma acha para fogueira que mostrou bem para que lado pende a balança da FIFA no Qatar.

Depois de algumas seleções europeias, incluindo a inglesa, terem anunciado que iriam utilizar a braçadeira One Love com as cores LGBTQ+ em nome da defesa dos direitos humanos, a ameaça do órgão que tutela o futebol mundial acabou por ser demasiado forte para que todos, a começar pelos Três Leões, tivessem de dar mais um passo atrás. O quê? Amarelos logo no minuto inicial (sendo que dois na primeira fase dão castigo), sanções monetárias pesadas e o que mais houvesse. Pesos diferentes um dia e meio depois da permissão para que a cláusula de venda de álcool nos estádios caísse a pedido do Qatar, sendo que a Comissão Europeia aproveitou para se colocar no meio e, através da porta voz Dana Spinant, dizer que “é importante que as causas representadas na braçadeira sejam reconhecidas por europeus e resto do mundo”.

Havia muito mais para falar num plano mais geopolítico, numa tensão que foi registada pelo Observador em dois momentos nos arredores das entradas em que jornalistas britânicos tentaram desviar a conversa para o que se está a passar no Irão e os iranianos perguntaram se não estavam ali para o futebol (mais logo, teremos um texto só sobre isso). Para já, rolava a bola e com um choque interessante entre uma Inglaterra que dava sinais de retoma com o quarto lugar no Mundial de 2018 e a final perdida do Europeu de 2020 mas teve uma Liga das Nações desastrosa que quase colocou Souhtgate em causa e um Irão de novo a trabalhar com Carlos Queiroz como nos dois anteriores Mundiais, com números que demonstravam grande solidez em termos coletivos e defensivos mas que ainda não tinham chegado para alcançar a segunda fase.

Na entrada em campo e até ao início da partida, ambas as equipas tomaram as suas posições. Como já se falava, os jogadores do Irão não cantaram o hino e o que veio das bancadas foram momentos arrepiantes com assobios, cânticos uns décibeis acima do normal e mulheres que choravam de emoção (e que ouviram depois aplausos quando apareceram nos ecrãs gigantes do Estádio Internacional Khalifa). De seguida, os jogadores da Inglaterra ajoelharam-se, na manifestação possível de um protesto por tantas proibições entre tantas proibições. Cada um teve a sua “vitória” antes da goleada carimbada com uma grande exibição coletiva e que teve Jude Bellingham a passear em campo como um Beatle e a fazer jus à Hey Jude, agarrando numa equipa que estava a desafinar e de que maneira nos últimos jogos para colocar tudo melhor.

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Hey Jude, don’t make it bad.
Take a sad song and make it better.
Remember to let her into your heart,
Then you can start to make it better.

Hey Jude, don’t be afraid.
You were made to go out and get her.
The minute you let her under your skin,
Then you begin to make it better.

O encontro começou praticamente à meia hora, entre duas longas paragens (14 minutos de descontos só na primeira parte) para assistência à Alireza depois de um choque com um companheiro que o deixou a sangrar do nariz. Nem mesmo o beijo do colega Majid Hosseini conseguiu estancar o problema, o que fez com que entrasse mesmo em campo Hossein Hosseini, uma vítima sem culpas desse naufrágio coletivo que penalizou em demasiado o Irão: após um remate de Mount às malhas laterais (29′) e de um cabeceamento de Maguire ao poste (32′), Bellingham inaugurou o marcador com um desvio de cabeça ao ângulo após um cruzamento de Luke Shaw (35′), Saka aumentou a vantagem na sequência de um canto com assistência de Maguire (43′) e Sterling fez o 3-0 que se registava ao intervalo concluindo uma jogada de Kane (45+1′).

Carlos Queiroz ainda tentou uma reação de choque para a segunda parte com três substituições ao mesmo tempo no intervalo, mas um golo de Saka acabou por quebrar de vez qualquer resistência (62′), valendo apenas aqueles cinco minutos em que Taremi reduziu a desvantagem na sequência de uma jogada iniciada num lançamento lateral (65′) e houve outro ataque do Irão que galvanizou as bancadas antes de Marcus Rashford entrar e marcar logo na primeira vez em que tocou na bola (71′), deixando bem expostas um conjunto de debilidades defensivas que não são habituais neste Irão que sofreu mais do dobro dos golos apenas num jogo do Mundial de 2022 do que em todos os três encontros realizados com Marrocos, Espanha e Portugal (5-2). E o jogo foi caminhando para o fim, com um golo de Jack Grealish após assistência de Callum Wilson, outro de Taremi de penálti e mais um fenómeno daqueles made in Qatar na assistência: a FIFA diz que o Khalifa tem 40.000 lugares, houve um aumento para 45.416 mas anunciar que estiveram 45.334 (apenas a 82 lugares da lotação esgotada) voltou a não corresponder mesmo à verdade…

A pérola

  • De forma quase inevitável, Jude Bellingham. O facto de ter sido o terceiro mais novo de sempre dos britânicos a marcar numa fase final (atrás de Michael Owen e Wayne Ronney) é apenas um pormenor entre uma exibição cheia de personalidade a confirmar tudo o que vinha de trás sobre o jovem médio do B. Dortmund (não por muito mais tempo se continuar assim). O meio-campo é dele, tem outro ponto positivo para Southgate que é a complementaridade de jogo e processos com Declan Rice ao lado e Mason Mount um pouco mais à frente e tem todas as condições para assumir mais protagonismo. O gesto técnico de cabeça com que inaugurou o marcador também foi um pormenor de craque.

O joker

  • O facto de Harry Maguire ter feito uma exibição quase isenta de erros perante os assobios (tímidos mas ainda assim assobios) que ouviu quando estavam a ser anunciadas as equipas poderia valer esta distinção mas há um jogador que provavelmente há seis meses ninguém acreditava sequer que fosse ao Mundial e que mostrou que é uma aposta ganha: Kieran Trippier, lateral direito que aproveitou a lesão de Reece James e o momento menos conseguido de Alexander-Arnold para assumir o lado direito da defesa e dar grande profundidade nesse flanco a permitir que Saka jogasse muitas vezes por dentro, como aconteceu no lance que acabou com o 4-0 onde trabalhou na diagonal de fora para dentro.

A sentença

  • A Inglaterra não está ainda passada aos oitavos mas deu um passo importante ficando agora à espera do resultado entre País de Gales e EUA para perceber quem poderá ser o adversário mais direito no final da jornada, o Irão também ainda está longe de qualquer eliminação na fase de grupos tendo em conta que os ingleses podem fazer nove pontos e que EUA e País de Gales é que são os adversários diretos.

A mentira

  • O número de golos sofridos pelo Irão e a forma como alguns deles foram até consentidos não faz jus ao que sempre foi o ponto forte da equipa desde que Carlos Queiroz assumiu o comando da seleção em 2011: a coesão defensiva, a capacidade de entreajuda entre os jogadores, a tentativa de jogar sempre pelo certo mesmo que isso nem sempre fosse bonito. A Inglaterra foi sempre melhor, teve muito mérito na forma como abafou os iranianos na saída com uma pressão alta que resolveu a partida no primeiro tempo, mas o Irão mostrou no segundo tempo que tem capacidade para corrigir a imagem deixada, com mais golos sofridos do que em três jogos de 2014 (quatro) e o triplo (!) de 2018 (dois).