O terceiro dia de debate orçamental foi dominado pela Saúde e impostos, dois temas que serviram à esquerda para colar o PS de António Costa à direita. “O PS propõe mais negócios para os privados e essa era a receita da direita”, acusou o Bloco de Esquerda sobre a gestão feita na Saúde. No plenário está, agora como deputada, a ex-ministra da Saúde, que também foi lembrada, pela direita a defender que há diferenças para o PS.
Numa altura em que o PS tem aprovado algumas propostas de alteração do Livre e PAN, começam a surgir referências a essa proximidade. Uma “pesca à linha”, como defendeu o PSD — com a deputada Inês Sousa Real, do PAN, a acusar o toque e a dizer que no PAN o PS não vai “pescar nada”.
Mas tem pescado, fazendo a prova que pretende de conseguir entendimentos com alguém no plenário para lá da maioria absoluta. Aliás, a dado momento do debate, já quando o tema eram os impostos dos trabalhadores independentes, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais anotou as conversas que têm decorrido entre o Governo e o deputado Rui Tavares, do Livre. À direita ouviu-se um sussurro, mas a verdade é que antes disso já o deputado João Moura, do PSD, tinha dito em alta voz e em tom de provocação que o Governo e o PS já identificaram “as duas únicas forças política que importam: o Livre e PAN”, acusando os socialistas de estarem a fazer “pesca à linha para que [essas bancadas] aprovem e se juntem aos 120 deputados do PS”.
O PSD continua a queixar-se do “rolo compressor” na maioria, dizendo que vai atingir a própria bancada socialista por defender nos debate “o contrário do que vota no dia a dia”. Uma tirada que visava atingir as aprovações que o PS tem concedido junto destes dois partidos, só para alimentar a imagem do diálogo.
Na bancada do PAN, Inês Sousa Real não gostou da referência e respondeu ao social-democrata: “Pesca à linha do lado do PAN não só é muito pouco animalista como não acredito em sereias, por isso o PS não vem aqui pescar nada”. Certo é que PAN e Livre foram os dois únicos partidos a absterem-se na votação da proposta de Orçamento do Governo no final de outubro. Ambos desafiavam o PS a aceitar propostas de alteração suas, no debate que se seguiria, e falta saber como votarão na próxima sexta-feira, quando acontecer a votação final global.
E se a direita faz esta colagem, a esquerda vai cravando outra: as parecenças entre PS e PSD. Se no debate na generalidade BE e PCP ainda atiravam ao anterior Governo de direita, acabando por aliviar a carga dos ataques aos socialistas, nesta especialidade há toda uma frente condenável e essa é constituída pelo PSD, mas também pelo PS.
O argumento foi especialmente visível quando se debateram as medidas orçamentais para o SNS e Pedro Filipe Soares, do BE, destacou que “o programa do PS é para fragilizar o SNS”, tal como a direita já tinha feito antes de os socialistas chegarem ao poder. “Com tanto amor ao SNS, trazer as mesmas propostas da direita é uma vergonha“, atirou o líder parlamentar bloquista à bancada do Governo já depois de João Dias, do PCP, ter feito a mesma colagem .
Na bancada do Governo, o secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre, garantiu, em resposta, que não defende nem “o papão da privatização da saúde”, que disse ter ouvido à esquerda, nem “a privatização do SNS como se de magia se tratasse”. “A outra via”, disse, é “reforçar o SNS”.
No Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares não perdeu a deixa e ironizou com o “redescobrimento” da “terceira via” para a Saúde. E como isso mostrar que para o PS o caminho é o da privatização do SNS, “o velho sonho da direita”. “Está a porta aberta para ser implementado. O Governo bate no peito a falar do SNS, mas é o primeiro a bater à porta à privatização”, argumentou.
À direita André Ventura pediu a palavra para lembrar que o Bloco e o PCP são responsáveis pelo estado do SNS. “Quem é que apoiou os orçamento do PS? Deram seis anos de orçamentos do PS em que tempos de espera no SNS aumentaram e agora vêm atirar culpas à direita?”. E apontou mesmo uma responsável, agora sentada na última fila do hemiciclo, na bancada socialista, a ex-ministra da Saúde Marta Temido.
Impostos. Do “disparate” da taxa única da IL às “criptocoisas”
Como acontece todos os anos, há um grande segmento da discussão orçamental dedicada exclusivamente a alterações aos impostos – e boa parte da manhã deste terceiro dia de debate foi ocupada com a extensa ementa de propostas de alteração, que tocava IRS, IVA, IMI ou IMT e que abrangia discordâncias entre partidos em temas tão vastos como a taxação das criptomoedas e do alojamento local ou das touradas.
Ainda assim, no meio de uma discussão variada, foi evidente a dinâmica quente sobretudo entre Governo e Iniciativa Liberal, mas também entre Governo e esquerda. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, funcionaria como o ponta de lança do Executivo, contornando ou recusando as propostas da oposição, que chegou a classificar como “disparates”, no caso da taxa (semi) única proposta pela IL.
Foi, de resto, com os liberais que a discussão subiu de tom. Com a IL a insistir na taxa para todas as pessoas que ganhem “menos de metade do salário dos deputados”, acusando o Governo de fazer um “esbulho às classes médias”, o governante lembrou que tanto segundo as contas da UTAO como segundo as somas do seu gabinete essa medida custaria três mil milhões de euros aos cofres públicos. E, repetindo os argumentos que o socialista Ivan Gonçalves tinha usado ao destacar, entre o “desfile de borlas e isenções” propostas pela oposição, o “pináculo da irresponsabilidade” da IL, quis encostar os liberais à parede e perguntar qual a despesa pública que cortariam para compensar a descida de imposto – ou se prefeririam sacrificar o excedente orçamental.
A discussão sucedeu-se em termos pouco “cordiais”, como comentaria o governante, com o liberal Carlos Guimarães Pinto a acusar o secretário de Estado de “mentir” sobre o impacto da medida nas contas públicas e o Governo de não ter “vergonha na cara”, e o PS a defender as virtudes de uma redução progressiva de impostos e a repetir comparações entre as políticas da IL e o malogrado Governo de Liz Truss. O diálogo não decorreria em bons termos nem com IL nem com PSD, que disse ver um “escândalo” nas taxas de IRS, sem os escalões serem atualizados à taxa de inflação – “um confisco nunca visto. A haver lucros excessivos por parte de alguém neste país, esse alguém foi o Governo”.
Ora se aqui não haveria acordo possível, quem se mostrou irritada com os tais lucros excessivos foi a esquerda, que pressionou o Executivo para não ceder às grandes distribuidoras nem oferecer mais “borlas” e “jackpots” aos grandes grupos, nem tão pouco aos chamados “nómadas digitais”. Ou seja, se o Governo se irritava particularmente à sua direita, à esquerda também não encontraria exatamente um ombro amigo – tendo a bloquista Mariana Mortágua chegado a perguntar, a propósito do “cinismo” e “injustiça” das taxas de imposto mais baixas para residentes não habituais, “afinal qual é a linha que separa o PS da IL?”.
O governante ainda tentaria estender uma ponte à esquerda, dizendo que o Bloco “sabe” que o PS nunca alinhará em taxas únicas e que até a IL “já percebeu que são um disparate”, uma vez que tem vindo a afunilar a medida. Mas a harmonia ficaria por aí.
De resto, o PCP insistiria que o Governo não dá apoios suficientes às pequenas empresas e exagera nas “dezenas” de benefícios para as maiores – e Mendonça Mendes entraria em campo para dizer que esse ponto era “falso” e contrapor com medidas de ajuda às pequenas empresas, concluindo que o argumento “não consegue fazer vencimento porque esbarra na realidade”. E, por muitos exemplos que a esquerda desse sobre as dificuldades do custo de vida, lembrando os preços do pão ou do leite, e garantindo que “a democracia tem de colocar as pessoas à frente dos lucros” (como disse Bruno Dias, do PCP), não conseguiria convencer o Governo dos seus argumentos.
Duas últimas discordâncias à esquerda: uma sobre os criptoativos – ou, segundo Mortágua, as “criptocoisas”, “máquinas de fazer lesados” ou até pura e simplesmente “banha da cobra” que não devem nem parcialmente contar com isenções. E outra sobre o IVA da eletricidade, que a esquerda continua a querer baixar, o que levaria Pedro Filipe Soares a acusar o Executivo de “teimosia política”.
Sem acordos à vista, a discussão seria rematada por outros dois protagonistas – Inês Sousa Real, do PAN, e Pedro Pinto, do Chega – num tema que costuma irritar ambos: as touradas. Sousa Real criticou a “estranha” coligação PSD, PCP e Chega que quer baixar o IVA das “anacrónicas” touradas; Pedro Pinto acusou o PAN de repetir mentiras sobre o benefício no IMI dado à praça de touros no Campo Pequeno; e Adão Silva, o social democrata que presidia aos trabalhos nessa altura, acabou a pedir que a caderneta predial do Campo Pequeno fosse trazida aos deputados.
Avocações não mudaram votos
Quanto às avocações, serviram o propósito mais comum: voltar a chamar algumas propostas bandeira, já chumbadas ou já aprovadas, a plenário para chamar a atenção sobre elas – sem grandes efeitos práticos. Neste terceiro dia de votações, o costume voltou a confirmar-se: em dez propostas, só duas – as do PS, sobre alojamento estudantil e apoios a alunos em bairros vulneráveis – foram aprovadas, como já tinham sido no dia anterior.
As restantes, que tocavam desde as propostas da direita para colmatar a falta de médicos de família ao lançamento de uma nova travessia sobre o Tejo, proposta pelo Chega, só serviram mesmo como mote para prolongar a discussão. A meio da manhã, tal como acontecera na tarde anterior, acabavam chumbadas pela maioria do PS