Desconfio, ainda que sem certezas médicas, que o meu estômago esteja dividido em compartimentos exclusivos, não comunicantes, que armazenam o bolo alimentar conforme a sua origem e composição. Um sistema digestivo inspirado no dos ruminantes, felizmente sem o incómodo e o embaraço social da regurgitação.
Esta desconfiança surge de uma capacidade inata para a qual não encontro outra explicação: a de consumir certos géneros alimentícios ad nauseam, independentemente dos que os precedem ou sucedem à mesa. Nomeadamente: pão com manteiga, tremoços e doçaria heterogénea, de tortas enroladas por anciãs a gelados de fabrico industrial.
Desconfio ainda que este último compartimento esteja, com a idade, a ganhar preponderância em relação aos restantes, tal a dificuldade que sinto hoje em terminar qualquer refeição sem uma sobremesa. Mesmo que ela tenha sido plenamente satisfatória, no momento em que se alinham os talheres no prato oiço o repicar do sino de Pavlov.
E se não salivo como os seus cães – que me aperceba, pelo menos – sinto um chamamento que só não afirmo ser divino porque não creio nesse segmento de entidades. O mesmo que me faz levantar da mesa do repasto para consultar in loco a oferta de sobremesas e a fazer perguntas de retórica do género “é caseira?”; “está fresca?” pondo-me a jeito para receber como respostas “é feita numa casa” ou “sim, está no frigorífico”.
Resumindo: identifico-me como guloso.
Assim, é natural que a ideia de um restaurante de sobremesas me tenha entusiasmado desde a primeira vez que me confrontei com ela. Até porque vinha, como é apanágio das boas ideias, com questões fracturantes associadas. Afinal, o que é uma sobremesa? Tem de ser doce? Será uma simples paragem, o destino final da refeição ou pode transformar-se na própria viagem?
É tão frequente entusiasmar-me com ideias como levantar-me para ir ver uma montra de sobremesas antes de as escolher. Mas é ainda mais frequente desiludir-me com a sua concretização. É que enquanto as ideias não passam de ideias têm um potencial infinito, vão crescendo e desafiando as expectativas. São como um balão que insufla e voa livre ao mesmo tempo. Quando se tenta trazê-lo de volta ao chão, ele muitas vezes rebenta.
Temi que isso acontecesse com o restaurante da Ana Raminhos, que encontrei por acaso num passeio por Campo de Ourique, poucas semanas depois de ter aberto. Esse temor não tinha a ver com a Ana – cujo trabalho já conhecia e acompanhava, desde os tempos do seu pequeno ateliê na Micropadaria em que reinventava, com delicadeza e criatividade, bolos de pastelaria tradicionais –, mas antes com a dificuldade em acreditar que a materialização do conceito de um restaurante de sobremesas pudesse, pela mão de quem fosse, fazer jus à idealização de um restaurante de sobremesas por alguém que aprecia tanto sobremesas.
E não é que pode?
Marquei mesa para um jantar a dois daí a uns dias. Fomos recebidos com simpatia pela Ana e pelo seu companheiro Hugo que a auxilia no serviço de sala. Explicaram-nos que as obras no espaço tinham sido eles próprios a fazer. Embora não estivesse ali para apreciar os dotes de bricolagem do casal, não pude deixar de me impressionar, tendo em conta o pé direito alto da sala e a sua área generosa.
A ementa incluía uma breve introdução sobre as intenções do projeto. “Uma experiência em torno dos pratos doces (…) que propõe desafiar os estereótipos da pastelaria e restaurante convencionais.” E uma frase que tanto pode ser de alento como de aviso: “Aqui, os pratos doces não são, afinal, tão doces.”
Lembrei-me, por momentos, de um chef pasteleiro que se orgulhava de fazer sobremesas para quem não gostava de sobremesas, esquecendo-se que quem pede sobremesas é porque, regra geral, gosta delas. Como qualquer partido que tenta agradar aos que, de qualquer forma, não votam nas suas propostas, arriscou alienar o seu eleitorado. Foi o que aconteceu.
A Ana Raminhos mostrou não correr esse risco. As sobremesas dela são amenas na doçura, denotam estudo e sensibilidade na escolha e casamento de ingredientes, muitos deles incomuns em pastelaria. Mas são, ainda assim, evidentemente sobremesas, capazes de agradar a gulosos, semi-gulosos, não-gulosos e demais variações da identidade de gula.
Existe uma pequena oferta de entradas salgadas, julgo que para amenizar o confronto com a novidade de uma refeição exclusivamente doce. Mas é dispensável, na minha opinião, não só porque Ana é muito melhor pasteleira do que cozinheira, mas porque as suas sobremesas têm, além das evidentes propriedades gustativas, uma enorme sensatez que respeita e permite a abordagem proposta pelo conceito do seu restaurante.
A de gelado de sésamo preto, por exemplo, remetia para frutos secos, tostados, a contrastar com a frescura dos morangos e do respetivo consommé. Noutra, equilibrava alcaçuz, miso, cevada e cacau com a mestria dos empregados de tasca que conseguem transportar seis travessas e oito copos de uma assentada, sem entornar uma gota. A terceira, uma tartelete de framboesas com sorvete desse fruto e hibisco e um creme de requeijão muito suave era um puzzle de texturas, sabores e temperaturas cujas peças encaixavam ao entrar na boca.
Ana finaliza cada uma das suas criações numa mesa de apoio à vista dos clientes. Sem segredos, com certeza na mão e sorriso nos lábios. As bebidas que propõe para harmonizar com a ementa andam entre os vinhos naturais ou de intervenção reduzida e os chás e infusões da Companhia Portugueza do Chá. Foi essa a minha opção, não porque não me agradasse a oferta vínica mas porque quando me perguntassem o que tinha jantado nesse dia queria poder responder “Chá e bolinhos.” Infelizmente, ninguém perguntou.
George Gabriel nunca apresentou um programa de variedades. Considerem-no, antes, um artista de variedades: ilusionista amador, numismata, praticante de fascinação hipnótica. Também há quem lhe elogie as almôndegas. Sustenta os seus vícios com diversos ofícios, nenhum deles tão útil a terceiros como o de Experimentador Implacável.