O debate do Orçamento do Estado na especialidade marca uma mudança na esquerda à esquerda do PS, com uma consequência direta para os socialistas: acabam estes quatro dias de debate isolados. A descolagem foi sendo feita e ficou consumada esta quinta-feira, com o PCP a deixar claro que só obrigado é que o PS, nos orçamentos da “geringonça”, cedeu medidas de esquerda e o Bloco a afirmar que as propostas orçamentais de Governo e PS transferem mais rendimento do trabalho para o capital do que o que foi feito no tempo da troika.

Acertar no nervo, promovendo a ideia de um PS colado à direita e neo-liberal. Foi esta a estratégia da esquerda que resultou num PS sozinho a recordar o passado da troika que, noutros tempos, PCP e BE alinharam em não deixar esquecer, mas que agora aparecem apostados em aproveitar noutra frente.

Mariana Mortágua encerrou a participação do BE nesta discussão na especialidade dizendo que “este continua a ser um orçamento marcado por uma escolha de classe, representa a maior transferência de rendimentos do trabalho para o capital deste milénio, maior do que no tempo da troika”. “Uma política de inspiração neo-liberal com discurso de esquerda pode parecer uma solução fácil mas não só mina a vida dos portugueses como a própria democracia”, rematou a deputada.

Os outrora parceiros do PS atacam a não atualização de pensões e salários à inflação e o “desrespeito” pelas carreiras do funcionários públicos ou a não redução do IVA da eletricidade ou ainda o PS “ter deixado entrar os privados nos cuidados de saúde primários”.

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O PCP ainda somou a questão da Cultura, com a deputada Alma Rivera a pôr mesmo o dedo na “geringonça” para afirmar que no tempo em que o PS não tinha maioria absoluta “era forçado a dizer ou fazer qualquer coisa de esquerda”, tendo mesmo votado uma resolução para o objetivo de 1% de orçamento nesta área de governação, mas esse continua longe, afirmou a comunista.

A ideia de um PS alheado e fechado sobre a sua própria maioria absoluta tinha surgido logo no primeiro dia de debate e, na avaliação da oposição, manteve-se na conclusão desta fase dos trabalhos. Mariana Mortágua, por exemplo, destacou o “forte compromisso” com que o PS sai neste debate: “Estudar, avaliar e ponderar”, ironizou.

Esteve longe de ficar sozinha nesta análise, com a mesma crítica a vir de outras bancadas. No PSD, Duarte Pacheco fez as contas e disse que o PS chumbou 97% das propostas apresentadas pela oposição. “Estão-se nas tintas, querem mostrar o ‘eu quero posso e mando’”. Quanto ao Orçamento que será aprovado esta sexta-feira, o social democrata diz que o resultado será o “empobrecimento dos portugueses”.

A Iniciativa Liberal concordou com a análise e anotou que “não é por aprovarem algumas propostas para sinalizar virtudes sem impacto orçamental que mudam este OE. Como foi bem referido mais de 97% das propostas foram chumbadas”, disse Rodrigo Saraiva. E avançou que não é com esses “pequenos aditivos” que o OE sairá “turbinado”. Já o Chega chamou de “apêndices” os partidos que alinharam com o PS nesta especialidade, dirigindo-se aos deputados únicos de Livre e PAN.

Rui Tavares e Inês Sousa Real passaram estes dias a rejeitar essa imagem, mas no final do debate o deputado do Livre foi claro na expectativa de mais inclusão até ao final das notações, guardando o seu sentido de voto final (na primeira votação, há um mês, Livre e PAN abstiveram-se).

No lado do Governo e do PS, Ana Catarina Mendes e Jamila Madeira rejeitaram a crítica de alheamento socialista. Ambas garantiram que houve diálogo e o maior exemplo a que se agarraram para o provar foi o acordo de rendimentos assinado mesmo nos dias antes da entrega do OE para 2023 no Parlamento.

Na oposição, os partidos têm de ter consciência da “possibilidade financeira real”, disse ainda a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares mantendo a fidelidade às contas públicas equilibradas. Outro nível de argumentação do PS na defesa que tem feito deste OE que aproveita para atirar ao PSD e aos tempos da troika. A ministra disse ser “extraordinário” ver o PSD reclamar mais poder de compra — “foram aqueles que no momento de uma crise horrível cortaram salários e pensões”.

 Malas de dinheiro, “parolice” e a “fraude” das pensões

Não é costume, mas neste dia final de debate na especialidade houve um momento que irritou particularmente o PCP e levou o partido a entrar numa discussão mais acesa com o Chega – prática que não costuma alimentar. Tudo por causa das propostas do partido de André Ventura para acabar com isenções de impostos como o IMI para os partidos, lembrando que o PCP era, pelo menos até 2019, o partido com maior património imobiliário, e exigindo aos deputados que mostrem que são “dignos do lugar que ocupam” e que “dão o exemplo”, nas palavras do deputado Bruno Nunes.

Ora isto levaria a uma discussão maior, que deixaria o Chega isolado e irritaria certamente os comunistas. Primeiro, foi o PSD, pela voz de Hugo Carneiro, a atirar acusações ao Chega e rejeitar a “falta de transparência no financiamento partidário e as malas de construtores civis a financiarem os partidos”. Depois, a socialista Jamila Madeira concretizou a acusação: “Não defendemos interesses ocultos, bem gostaríamos de ver as contas do Chega tão transparentes como as do PS”.

Com o Chega acossado e a disparar em todas as direções, lembrando investigações a responsáveis políticos do PS ou do PSD e devolvendo a acusação sobre as tais “malas de dinheiro”, Bruno Nunes garantiu que o Chega é mesmo o partido mais escrutinado do país – mas quando a líder parlamentar comunista, Paula Santos, pediu ao Chega que explicasse os donativos das famílias Champalimaud e dos Mello, a bancada irritou-se e ouviram-se variados e prolongados apartes (“Que é que tens a ver com isso?”).

Entre acusações sobre os lucros sem IVA da Festa do Avante ou o IMI que o PCP (e não só) não paga, Paula Santos acabou irritada a responder ao Chega: “Estamos cá para defender os trabalhadores e não os interesses dos grupos económicos, como os vossos partidos”. Augusto Santos Silva acabaria a tentar serenar os ânimos e lembrar que todos os deputados têm o mesmo direito de falar no Parlamento.

Evidente também, como tem sido costume por estes dias, foi a tensão entre Bloco de Esquerda e PS, mesmo em temas mais concretos. Quando a discussão chegou à taxação da criptoeconomia, que o BE quer mais rigorosa; à falta de investimento na investigação nacional (enquanto se atribuem benefícios fiscais a empresas de fora); ou à borla a “traficantes e especuladores” que são “super ricos”, via vistos Gold, o Bloco não perdoou. Mariana Mortágua chegou mesmo a falar numa visão “parola” do Governo, que contribuirá para autênticas “fraudes fiscais”. Em resposta às acusações, e mostrando que mais uma vez não há forma de BE e PS se entenderem, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, acabaria por lamentar uma visão “maniqueísta” do antigo parceiro, que vê tudo “a preto e branco, dividindo todos entre os bons e os maus”.

Mesmo assim, nos pontos mais quentes do debate os argumentos da esquerda recolheram apoios até nas bancadas da direita, que estão de acordo no que classificaram como uma “fraude” que o Governo cometerá contra os pensionistas ao não atualizar as pensões de acordo com a fórmula que está na lei. Feitas as contas, a conclusão é comum: tanto para o BE como para o PCP e para a direita, o Governo parece ser, assim, o “mau” desta história.