Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar
Jogos às 13h locais já não é propriamente fácil pelo aumento das temperaturas nos últimos dias, estar numa bancada atrás da baliza a apanhar com o sol de frente desde o início do encontro ainda pior. Aqui nem aquele mítico “Put the cream on, you are very white!” funciona porque este é daqueles que queima a sério. Todavia, esse até nem era o pior dos problemas tendo em conta quem estava do outro lado. Se no campo se esperava um encontro competitivo mesmo não tendo em ação duas das equipas mais apreciadas da competição, ainda no metro o Irão goleava por completo entre cânticos, saltos e cornetas a deixar os galeses no bolsinho. Aqui no Qatar não há propriamente aquela rivalidade clubística entre adversários e nem mesmo o gozo dos sauditas aos argentinos resultou em qualquer tipo de problema mas é no apoio que se vê. E que se viu.
Os iranianos não são aqueles adeptos que se vê muito na rua ou nos outros estádios, como acontece com os mexicanos, os argentinos ou os brasileiros, mas são uma da maior massa de apoio que se encontra em Doha. Já tinha sido assim com os ingleses, foi assim com o País de Gales, será assim com os EUA. E são daqueles que quando puxam pela equipa, puxam a sério. O mote deixado por Carlos Queiroz ainda no decorrer da segunda parte da partida com a Inglaterra e no final do jogo foi “aceite” por um povo em convulsão de 90 milhões de pessoas que por 90 minutos faz uma trégua nas mortes e detenções por protestos no país para soltar a sua paixão pelo futebol e por aqueles que muitos gostavam que fossem os símbolos da revolução. Após a goleada sofrida a abrir, uma nova derrota seria o fim – mas também os galeses não podiam perder.
Não havia outra forma de ler as coisas: este era um daqueles jogos que representava mais do que isso após aquilo que Carlos Queiroz como um treino a sério de preparação para as restantes duas partidas que serviu para perceber os erros cometidos que redundaram num número de golos igual num jogo do que o Irão tinha sofrido em seis com o técnico português em 2014 e 2018. A Inglaterra ganhou aquela partida daquela forma porque foi muito melhor, não há dúvidas. Ainda assim, beneficiou daquilo que antes os iranianos raramente perdiam: o controlo anímico. Mesmo tentando passar ao lado da realidade no país, há uma parte política que pesa, que pressiona, que condiciona até pelo “espicaçar” de milhões para que tomem posições mais fortes contra o regime quando nesta fase só pretendem fazer a sua missão. Hoje era dia de novo teste.
Mais uma vez, não sendo um daqueles jogos cabeças de cartaz de um dia onde se jogariam por exemplo o Países Baixos-Equador e o Inglaterra-EUA e não tendo propriamente muitas oportunidades, a primeira parte foi entretida de ver. Nico Williams teve uma primeira tentativa de remate que passou ao lado (3′), Sardar tentou também a sua sorte mas frouxo e à figura (7′), Kieffer Moore apareceu bem ao primeiro poste para fazer o desvio travado pelo hoje guarda-redes titular Hossein Hosseini (12′), Ali Gholizadeh marcou mesmo após combinação com Sardar mas o lance foi anulado pelo VAR por fora de jogo (16′). O intervalo chegaria mesmo com um nulo e com uma quebra de ritmo que para quem estava mesmo de frente para o sol trazia possíveis sintomas de sonolência mas com essa certeza de que algo teria de mudar no rumo da partida.
Mudou. Ou melhor, iria mudar se não fossem os postes: nas duas oportunidades mais flagrantes de todo o jogo até então, Sardar ganhou pela primeira vez as costas da defesa contrária, foi aguentando a pressão e atirou ao poste (51′) para, no seguimento da jogada, Ali Gholizadeh fazer a diagonal e acertar também de pé esquerdo no poste (52′). O Irão tinha as suas chances, nem assim o País de Gales conseguiu despertar e, já sem Sardar em campo pelo desgaste físico, Hennessey fez uma grande defesa a desviar para canto um tiro rasteiro de Saeid Ezatolahi (73′). O jogo começava a partir também pelo cansaço notório das duas equipas, Ben Davies viu Hosseini fazer a melhor defesa até aí (83′) e Hennessey foi expulso logo de seguida, numa falta duríssima sobre Taremi ao sair da área. O Irão tentava tudo nos derradeiros minutos, com Mehdi Torabi a atirar muito perto do poste (88′) antes de Chesmi disparar um tiro de fora da área para o 1-0 no oitavo minuto de descontos e Ramin Rezaeian aumentar após assistência de Taremi aos 90+11′.
A pérola
- Ali Gholizadeh tem ainda 26 anos, chegou em 2018 aos belgas do Charleroi vindo do Saipa e fez um daqueles jogos que, qualquer que fosse o resultado, ficaria sempre bem na carta de recomendação para um novo projeto: a desequilibrar em diagonais da direita para o meio aproveitando o pé esquerdo, a ser o mais ativo na hora de lançar transições rápidas quando o jogo não ia direto em Sardar, a fechar nas horas de maior necessidade. Também Saeid Ezatolahi, médio centro com a mesma idade que tem ligação contratual aos dinamarqueses do Vejle mas já passou pela Rússia, pela Bélgica, por Inglaterra e pelo Qatar fez um encontro interessante na recuperação de bolas e na primeira fase de construção.
O joker
- Foi pela primeira vez titular, não conseguiu marcar (atirou uma bola ao poste) mas foi sempre aquele elemento que quando tocava na bola fazia com que os adeptos iranianos automaticamente ganhassem um novo estímulo pelo jogo. Sardar Azmoun é uma das grandes figuras da seleção do Irão, joga numa equipa de Bundesliga (Bayer Leverkusen), ganhou um mediatismo só ao nível de Taremi mas tem algo mais que o torna diferente – é o elemento que mais critica de forma aberta o regime iraniano e a opressão feita pelas autoridades aos protestos. Mais uma vez, não é política… mas também é política.
A sentença
- Com este resultado fica tudo em aberto para as duas equipas mas com o Irão a depender apenas de si para se qualificar pela primeira vez para os oitavos de um Campeonato do Mundo. Aliás, dependendo do cenário que saia do Inglaterra-EUA, pode até ser preciso apenas um empate: caso os ingleses vençam asseguram a passagem aos oitavos em primeiro lugar e os iranianos podem até só empatar com os americanos caso os galeses não consigam vencer a seleção dos Três Leões. Em caso de triunfo com os EUA, o Irão carimba automaticamente mais um feito histórico em termos de Mundiais.
A mentira
- O filme já se tinha visto frente à Inglaterra, agora voltou a repetir-se no jogo com o País de Gales. Vários jornalistas internacionais foram procurando saber junto dos adeptos iranianos o que acham da atual situação do país, da importância deste Mundial enquanto espelho para a realidade e do sucesso da equipa de futebol para dar uma alegria ao povo. Uns falam de forma mais reservada (os que abordam o que se passa de peito cheio são raríssimos), a maioria recusa, ainda há uns quantos que atiram meio zangados “It’s not politics, is football stupid“. Até poderia ter razão, ou tem mesmo, mas quando chega a parte do hino percebe-se que sim, isto também é política. Uns assobiam em protesto, uns choram de emoção, outros mostram cartazes de revolta, os jogadores foram notícia porque desta vez cantaram e não ficaram em silêncio. O que irá acontecer depois do Mundial, só o tempo poderá dizer.