A neve acumula-se no lado de fora de uma janela envidraçada no centro do palco. Num cenário que remete para uma casa tipicamente inglesa do princípio do século XIX, dois atores escutam a notícia de um crime, informação saída de uma velha telefonia. “Chapéu de feltro, sobretudo e cachecol”, relata a polícia sobre o suspeito à solta, como quem descreve as camadas de roupa que um hóspede vai tirando, quando entra nesta pousada liderada por um casal em dificuldades financeiras.
Estamos perante um crime — disso sabemos — e o suspeito está entre os hóspedes deste modesto hotel ainda mal iluminada pela madrugada. Entre a ficção e a realidade, uma voz familiar soa da porta da entrada: 17 minutos depois da peça ter começado, escuta-se a primeira ovação. De casaco e calças castanhas, camisa branca e lenço, com uma bengala a marcar-lhe os passos, entra o general, personagem vestida por Ruy de Carvalho. Ninguém sabe se será ele o vilão desta história. Mas na plateia não sobram dúvidas de que é o herói da noite: são 80 anos de carreira celebrados pelo Teatro Nacional Dona Maria II (TNDMII).
Foi desta forma que arrancou o espetáculo “A Ratoeira” — um texto de Agatha Christie — aqui encenado por Paulo Sousa e Costa. Duas horas e dez minutos para celebrar o percurso de um homem que ajudou a construir o teatro português. Aos 95 anos de vida e 80 de carreira, Ruy de Carvalho é o ator português mais velho no ativo. Aquele que será também, porventura, o ator mais acarinhado do público português – tal como dirá mais tarde, numa curta sessão de palavras, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva.
Pouco antes das portas se fecharem e as luzes se apagarem lentamente, cá fora vários atores conhecidos cumprimentam-se em modo de celebração. Da feira de Natal do Rossio, ali mesmo ao lado, alguns curiosos aproximam-se para perceber a razão de tanta gente vestida a rigor. No topo da entrada, uma imagem de Ruy de Carvalho preenche o varandim da mítica sala de espetáculos. Além dos 80 anos de carreira que se celebravam em palco, havia (e continua) uma exposição de retratos do ator, cuidadosamente guardados no arquivo do D. Maria II.
A imagem de Rei Lear, talvez um dos seus papéis mais emblemáticos — com texto de William Shakespeare – surge no lobby do teatro, encaixilhado numa fotografia a preto e branco. Os traços do ator são inconfundíveis e ninguém dirá que já passaram mais de duas décadas desde a estreia desta versão cénica de Maria João Rocha e encenação de Richard Cottrel: “Em cena na Sala Garrett do TNDMII de 23 de janeiro a 1 de março de 1998, num total de 30 apresentações”, pode ler-se na legenda da imagem.
Será preciso subir ao primeiro piso – onde se situam os camarotes – para encontrar dezenas de retratos do consagrado ator [a exposição está patente até 30 de novembro –, com curadoria de Nélson Mateus, cujas palavras inscritas na folha de sala dificilmente poderiam arrancar com mais verdade: “Ruy de Carvalho não tem idade, é intemporal.” Uma imagem óbvia ao longo de “A Ratoeira”: circulando lentamente, apoiado numa bengala que parece dominar com mestria, o ator – o General, no papel –, faz-se ouvir a cada fala, sem que lhe falte voz ou emoção.
“Duas coisas para dizer: muito obrigado”
O cenário é simples, mas acolhedor: uma sala antiga, forrada a papel de parede, dois sofás, uma secretária onde repousa um velho rádio e o telefone, alguns tapetes espalhados pelo chão e uns candelabros na parede. Não será preciso muito mais para arrancar silêncios de angústia e gargalhadas de felicidade, a uma plateia que encheu o TNDMII, que aguardava esta estreia há longos tempos.
De certa forma pode-se estabelecer um paralelo entre a encenação do texto de Agatha Christie e a atualidade: primeiro, porque os hóspedes – ou suspeitos do crime – ficaram presos no hotel devido a uma tempestade de neve, e depois porque a própria realidade se impôs à ficção. “Foi uma verdadeira ratoeira para nós, uma vez que estávamos a uma semana da estreia quando o país e o mundo se recolheu por via de uma espécie rara de um ditador denominado Covid-19”, escreveu o encenador, Paulo Sousa Costa.
Mas, se dois anos de confinamento complicaram muitas vidas, prejudicaram artistas e técnicos que sempre viveram da celebração que é juntar pessoas numa sala, hoje, no palco, nada disso passa para o público: a história é dinâmica, as personagens entram e saem constantemente do cenário, e quando Ruy de Carvalho reaparece, lá volta também a emoção de o ver sem vacilar. “Estava na adega!”, gritou do fundo dos pulmões, para o inspetor que investigava o crime, já no segundo ato.
O ator de 95 anos tem poucas falas e muita presença: enquanto decorrem diálogos desconcertantes entre os restantes atores (Daniela Cerca Santos, Elsa Galvão, Filipe Crawford, Henrique de Carvalho, Luís Pacheco, Sara Cecília e Sofia de Portugal), o major vai observando, deita os olhos ao chão, apoia-se na bengala, circula de uma ponta à outra do palco. Quando fala todos se calam, porque afinal ele é o Major Ruy de Carvalho, uma verdadeira autoridade nas tábuas.
Alguém cortou a linha telefónica, o inspetor perdeu os esquis para regressar ao posto e avisar do crime, as personagens desconfiam umas das outras, bem ao estilo da autora inglesa: todos usaram o tal sobretudo, chapéu de feltro e cachecol. A história, como quase todas, tem um fim. Mas aqui não foi o descer das cortinas, perante uma ovação em pé, que marcou a noite. Foram as palavras de Ruy de Carvalho. “Para exprimir a minha alegria e honra, só tenho mesmo duas coisas para dizer: muito obrigado.”
O momento final, já depois de a peça ter terminado, foi solene: esteve presente o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, que ao discurso mais previsível: “A minha filha, de 14 anos, fez questão de vir comigo só para ver Ruy de Carvalho. E se houve uma frase da peça que me chamou a atenção – ‘não conhecemos bem as pessoas que conhecemos’ –, neste caso é mentira: o Ruy é um de nós, todos os portugueses conhecem Ruy de Carvalho”. Pedro Penim, diretor artístico do TNDMII, ainda recordou a estreia, em 1947, do ator neste teatro com a peça ‘Rapazes de Hoje’. “O Ruy é um rapaz de hoje, grande, enorme, gigante. É um privilégio sermos contemporâneos deste Senhor.”