Grande parte da história não fica nos registos. Há momentos que, por mais que sejam recordados, não mais terão a intensidade que os marcou na hora em que aconteceram. O Mundial do Qatar deixou-nos várias narrativas que vão ser lembradas no futuro, mas que, quem teve oportunidade de as viver, de certeza que vai continuar a sentir aquele orgulho latente de ter passado por elas.
O jogo entre Croácia e Marrocos até podia carecer, aparentemente, de pontes de interesse por, na melhor das hipóteses, valer “apenas” um lugar no pódio ao vencedor. No entanto, a atenção do olhar agarrava-se ao que Luka Modric podia fazer numa partida que era, para si, a última em Mundiais. O maestro anda sempre com a batuta no bolso e, seja para uma ou para um milhão de pessoas, o espetáculo está garantido. Ficou a sensação de um presságio para a hora em que nos tivermos que despedir definitivamente do senhor da fita no cabelo que, com a bola nos pés, é um louvor à arte futebolística.
Era também a última oportunidade de se ver Marrocos, a seleção africana que mais longe chegou num Mundial e que encantou pela paixão e entreajuda, pela superação e pela demonstração de que é em campo que se define quem são as grandes potências. Uma equipa versátil que se camuflou para superar os adversário, mas que não vai ficar escondida nos terrenos do esquecimento.
Além de tudo, a diferença entre ficar em terceiro e quarto ainda era de dois milhões de euros. O último lugar no pódio valeu 24 milhões de euros para a equipa que o conquistou, já o quarto classificado arrecadou 22 milhões. Ainda assim, nem o selecionador croata, Zlatko Dalic, nem o selecionador marroquino, Walid Regragui, arriscaram prejudicar a integridade física de alguns jogadores que acumularam problemas físicos ao longo do Mundial. Apesar das contrariedades, Marrocos não desfez a estrutura de 4-3-3 que trouxe a equipa africana tão longe na prova. O mesmo não se pode dizer da Croácia que vinha jogando em 4-3-3, mas que para este jogo assumiu um 4-4-2 dinâmico. Na frente, os representantes europeus na partida utilizaram Kramaric e Livaja. Perisic apareceu como lateral-esquerdo e Orsic como extremo no lado canhoto. O fator diferenciador foi Lovro Majer que, vindo da direita, procurou receber a bola numa zona mais adiantada relativamente aos médios-centro Modric e Kovacic.
Quando a bola começou a rolar no Estádio Khalifa Internacional, os jogadores pareciam estar com pressa para regressarem ao hotel e fazerem as malas para casa. Um mês longe de um ambiente familiar é causa para saudades. Por isso, Gvardiol (7′) finalizou um livre trabalhado e fez o 1-0. Ainda sem que os croatas tivessem degustado a vantagem, já Marrocos, por intermédio de Yahia Allah (9′), repunha o empate. Parada e resposta: a toada de um jogo em que correr para a frente era a lógica assumida pelos dois conjuntos. Nesse sentido, os golos não podiam ficar por aí. Orsic (42′) embelezou o jogo ainda mais, com um remate em arco que Bono se esforçou ao máximo para impedir que entrasse. O máximo que o jogador marroquino conseguiu foi enviar a bola ao poste, mas nem o ferro a impediu de seguir o caminho das redes.
A reação de Marrocos foi ténue e demorada. En-Nesyri foi o protagonista nos dois lances que mais fizeram as vuvuzelas humanas dos marroquinos vibrar. Aos 75 minutos, na cara de Livakovic, a envergadura do guarda-redes croata impôs-se para travar o avançado. No último lance do encontro, o cabeceamento do jogador do Sevilha saiu por cima, o que fez com que a seleção surpresa do Mundial do Qatar não conseguisse evitar a derrota por 2-1.
A pérola
- Quando se tem centrais que jogam de pantufas nos pés, é fácil lidar com a pressão dos adversários. Gvardiol e Sutalo, este segundo em estreia no Mundial, livraram-se com categoria das tentativas de condicionamento da defesa marroquina. Com riscos, é certo, mas com uma compensação superior aos danos que podiam ter causado. Gvardiol, em particular, merece que o seu nome seja elevado por todo o Mundial que realizou e que pode fazer do jogador do Leipzig o defesa mais caro de sempre, segundo os rumores de transferências que têm circulado. A máscara que usou durante todo o torneio não o impediu de marcar um golo que serviu para terminar da melhor maneira um Campeonato do Mundo que não vai esquecer. Gvardiol é o futuro da Croácia.
O joker
- O que seria para um jovem de 18 anos estrear-se pela seleção do seu país? O que significaria para esse mesmo jovem fazê-lo num Mundial? Pergunte-se a Bilal El Khannous que conseguiu fazer as duas coisas num só dia. Quem não soubesse o que estava a acontecer, bastava reparar no olhar do jogador do Genk enquanto o hino marroquino tocava para perceber o que estava em causa. Alinhou como médio interior e mostrou pormenores técnicos interessantes no último terço. A utilização de El Khannous fez parte do plano do treinador Walid Regragui para lançar todos os jogadores marroquinos convocados. Só ficou a faltar o guarda-redes Reda Tagnaouti somar minutos no Mundial.
A sentença
- Croácia e Marrocos já se haviam defrontado na fase de grupos, naquele que foi o primeiro jogo oficial entre as duas seleções. Na altura, o resultado terminou empatado a zero. Desta vez, os golo apareceram. Tudo somado, a Croácia leva para casa a medalha de bronze e Marrocos arrecada o contentamento de ter feito a melhor campanha de sempre de uma seleção africana num Mundial. Os croatas ficaram em terceiro lugar pela segunda vez, depois de, em 1998, terem terminado no último lugar do pódio. Ainda assim, este não é o melhor resultado de sempre da equipa europeia, visto que, na Rússia, em 2018, ficaram no segundo lugar.
A mentira
- “Ninguém vê o jogo para decidir o terceiro lugar”, “Croácia e Marrocos são equipas muito defensivas”, “tem tudo para ser um jogo aborrecido”, vaticinavam os pessimistas em relação ao duelo entre croatas e marroquinos. A verdade é que se o sol e o bom tempo levou os mais agoirentos a um passeio na rua, então perderam um belo espetáculo entre duas seleções que tentaram chegar às balizas adversárias com intenção. Assitiu-se a um jogo bem menos amarrado do que muitos outros que aconteceram na fase de grupos e nas eliminatórias que precederam.