A mensagem assusta: a humanidade perdeu. Primeiro ,“The Last Of Us” insere o espectador no início de tudo, 2003. Fica-se a conhecer Joel (Pedro Pascal) e num abrir e fechar de olhos entende-se com clareza que tipo de pessoa se tem à frente. Assim que o surto infeccioso de “The Last Of Us” bate à porta de Joel, este tenta fugir da cidade com a filha e o irmão. Na saída, encontra uma família à beira da estrada. O irmão quer parar, Joel não. “Mas eles têm uma criança”, diz o irmão, “nós também”, responde Joel. Protetor, gosta de jogar pelo seguro, determinado e capaz de tudo. Feita a introdução, salto para vinte anos depois, 2023, o ano em que também a série estreia. “The Last Of Us” bate à porta e reforça o óbvio: a humanidade perdeu. A série que estreia na HBO Max a 16 de janeiro será um dos acontecimentos no entretenimento desta década.

Há entusiasmo e há razões para o entusiasmo. Comece-se pelas razões, “The Last Of Us” é uma adaptação de um jogo da Playstation 3 lançado em 2013. Foi recebido com estrondo, entretanto tornou-se num daqueles “melhores videojogos de sempre”. Quase dez anos após o lançamento, ainda impressiona como a ideia de jogar é comprometida pela ideia de viver uma narrativa. O mundo de “The Last Of Us” sente-se vivo, em parte porque aquele universo puxa o jogador para o lado humano das personagens e menos para aquilo que o jogador pode fazer. Isto sem deixar de ser um jogo. Numa entrevista via Zoom realizada no início de dezembro, Pedro Pascal reforça essa ideia através da experiência de alguém que só teve contacto com o jogo vários anos depois: “Nunca tinha jogado antes de ter ficado com o papel. Ao jogá-lo, percebi como já era influente no cinema e na televisão.”

Eis o que o leitor que não joga videojogos – ou que não jogou “The Last Of Us” – não sabe: a influência do jogo da Playstation já se sente em muita coisa que vê. E aqui entra o tal entusiasmo, esta adaptação da HBO pode abrir portas a toda uma nova dinâmica do entretenimento, a das adaptações de videojogos para televisão. Já há muitas em produção (“Fallout”, “God Of War”, “Horizon”, entre outras) e nunca houve tanta certeza de que isto pode funcionar. As adaptações para cinema começaram na década de 1990 e não funcionaram, mas o formato série e o embalo de como a linguagem dos videojogos já existe na forma de contar histórias pode mudar a qualidade das adaptações e, em simultâneo, a perceção da audiência. É aqui que “The Last Of Us” se torna numa peça chave, como uma história de perda e sobrevivência com que se relaciona com facilidade. Chamou-se alguém para fazer a adaptação que já tinha feito algo semelhante muito bem, Craig Mazin (“Chernobyl”). Craig colaborou de perto com Neil Druckmann, um dos diretores criativos do jogo original.

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A série arranca com uma cena marcante, num programa de televisão dos anos 1960s, especialistas debatem o surto de pandemias. É feita uma pergunta em volta de um “e o que aconteceria se…” e a resposta de um deles é simples: perderíamos. Eis a premissa essencial de “The Last Of Us”, a natureza ganhou, a humanidade perdeu. Um surto de uma variação do fungo Cordyceps mistura-se com o ADN dos humanos e torna-os em criaturas violentas e irracionais. Se morderem as vítimas, passam o vírus. Contudo, este também pode ser transmitido pelas vias respiratórias. O clássico tiro na cabeça arruma o assunto de quem se transforma. Se não forem mortos, deambulam por aí, a paisagem foi tomada pela presença do fungo e existe em todo o lado. Os humanos que foram infetados estão ligados a um mega sistema nervoso e reagem a ele. O fungo evolui no próprio humano e há alguns que, com o passar do tempo, se tornam também parte da paisagem. Tanto no jogo como na série, a sensação é a mesma quando se presencia isto pela primeira vez: é uma forma bizarra de contornar a morte, a única que existe em aceitar a eternidade, tornarmo-nos paisagem.

Anna Torv e Bella Ramsey

Natural que se chegue até aqui e se pense que “The Last Of Us” é mais uma ficção sobre zombies. É uma pergunta que se faz e uma que foi feita a Craig Mazin: “Temos zero preocupações com essa confusão porque isto não é uma série sobre zombies. Sim, as pessoas foram infetadas. Mas é um programa sobre seres humanos, sobre os que não estão infetados e as suas relações. As histórias que o Neil criou no primeiro jogo, e que expandimos na série, são maravilhosas. E não dependem dos zombies. No jogo, a jogabilidade obriga-te a matar inimigos, aqui, isso não faz parte. Claro que há momentos desses, mas há muito mais de tudo o resto. Quando vês os infetados na série, serve algo muito específico e é em direção da história.”

Eis a história que Neil co-criou. No dia em que tudo começa nos Estados Unidos, Joel perdeu a sua filha. Em 2023, com a sua parceira Tess (Anna Torv), percorre as imediações da zona segura onde vive à procura de materiais para vender e trocar. Um dia cruzam-se com Marlene (Merle Dandridge, que também interpreta a mesma personagem nos videojogos), líder dos Fireflies, um grupo de resistência ao exército que controla grande parte do território onde os humanos vivem. Marlene contrata Joel e Tess para uma missão, transportar Ellie (Bella Ramsey) para outra cidade, onde alguém a espera. Ellie tem catorze anos e é imune à infecção. Pode ser o segredo para uma eventual cura. Este é o ponto de partida para a viagem entre Joel e Ellie. Para ele, ela é só uma missão. Para Ellie, Joel vem de um passado em que ela ainda nem existia.

As semelhanças do primeiro episódio com a primeira hora de jogo são estrondosas: não por uma ideia de papel vegetal, mas como comunicam o mesmo: “Uma das coisas que discuti com o Craig é a de que queria ver mais elementos familiares. Isso seria difícil de fazer no jogo, não seria funcional, mas  na série poderíamos vê-los a tomar o pequeno-almoço, a Sarah a ir à escola, apanhar as suas conversas e até desenvolver a relação com o Tommy (Gabriel Luna), que tem mais importância aqui do que no jogo. Queríamos que estes elementos fizessem parte de uma história em andamento.”, diz Neil Druckmann.

Pedro Pascal, um dos protagonistas, e AnnaTorv

O terceiro episódio dá um cheirinho daquilo que Craig quer dizer quando se refere a histórias que “expandimos na série”. A série sai temporariamente da aventura de Joel e Ellie para contar a jornada de duas personagens ao longo do período em que o mundo mudou. A envolvência é grande desde o primeiro minuto, ao ponto de em nenhum momento se pensar por que raio “The Last Of Us” se desviou da sua história principal quando ela estava prestes a começar. O ato é menos de coragem e mais de ambição, Craig e Neil querem que o espectador habite neste mundo, que o sinta como possível.

A HBO foi buscar dois atores do universo de “Game Of Thrones” — embora nunca se tenham cruzado na narrativa da série — para os papeis principais. Pedro Pascal (que, ao que consta, está a ganhar balúrdios por episódio) e Bella Ramsey formam um par que lembra o pai e a filha de “A Estrada” de Cormac McCarthy. É a sua história que vai vencendo e superando o facto de a humanidade ter perdido. Perguntamos a ambos os atores se é isso que torna “The Last Of Us” diferente: “Nunca vi nada assim. Antes disto, há vírus criados pelo homem que destruíram o mundo em 24 horas, ou que transformaram os humanos em zombies. Aqui é algo que existe na natureza, no mundo que vivemos: são fungos. Os fungos dominam a natureza e pensar que se podem cruzar com o ADN humano não é totalmente impossível, porque a ciência não para de nos surpreender. Esse aspeto é assustador, porque temos cogumelos à nossa volta, de todos os tipos. Há pouca separação entre nós e a história que é contada. E, depois, nada disto é arbitrário, mas realístico, pela forma como desenvolve as relações humanas num mundo de horrores.”, diz Pedro Pascal.

Bella Ramsey pega também no facto de “isto acontecer é teoricamente possível. Em relação à ideia de que a humanidade perdeu… eu acho que há pequenas bolsas de esperança ao longo da temporada. Há pessoas que ainda têm alguma esperança. A dado momento a Ellie pergunta ao Joel: “Se achas que não há esperança, porquê continuar?” É interessante pensar que a humanidade perdeu, mas eu gosto mais de existir aqui uma esperança realista. A esperança, aqui, é muito pragmática.

Pedro Pascal é Joel Miller

Ao longo de nove episódios um outro 2023 bate à porta, aquele imaginado para um videojogo, que ganhou forma em 2013, e que se prepara para conquistar toda uma nova audiência dez anos depois, num mundo que ainda se debate com uma pandemia. Ao contrário de outras séries sobre pandemias que se estrearam nos últimos dois anos (por pura coincidência), “The Last Of Us” não contorna os medos do presente. Enfrenta-os. Gabriel Luna, que interpreta Tommy, o irmão mais novo de Joel, entende a localização temporal em 2023 como uma porta: “Penso que torna a série imediata. Se acreditas na ideia de multiverso, “The Last Of Us” mostra-te um mundo que poderia existir agora, se ao invés da Covid-19 tivesse sido um fungo que passa a dominar o mundo. Situar em 2023 é uma forma de trazer tudo para a frente, dar a experiência imediata. A pandemia ensinou-nos a aceitar a série com a realidade, isto é, de que o fim pode vir e ser imprevisível. E a pandemia pode ser uma rampa para a audiência, porque agora sabem como é, não precisam de imaginar. Por exemplo, no primeiro episódio ouves na rádio notícias sobre algo que se está a passar noutro canto do mundo. E, do nada, está aí. Já sabemos como isso é agora, como acontece. Tenho falado com gente que acha que há fadiga para este tipo de história, eu acho o contrário, a pandemia abriu uma porta para a audiência. Já passámos todos por isto.”

Tudo é familiar em “The Last Of Us”, apesar da ideia de derrota contra a natureza parecer uma ideia vaga, a execução dela aproxima a audiência da realidade da ficção. Pela amostra – os quatro primeiros episódios –, a viagem de Joel e Ellie parece só estar no princípio. Há aqui série para vários anos, com histórias de pessoas num mundo que jamais poderão recuperar. Por mais bolsas de esperanças que existam, o mundo de “The Last Of Us” é cruel a passar a mensagem. Perdemos. Não há muito mais a fazer senão viver, até nos tornarmos paisagem.