Que faz um grupo de amigas no fim de semana quando o frio aperta? Dedica-se à cultura, claro, porque se não podemos tostar a pele, podemos pelo menos enriquecer o cérebro e aquecer o coração. Num passeio em criança a um château onde se fazia vinho que fiz há muitos anos, havia uma enorme lareira crepitante acesa e desde então sempre associei vinho ao frio. Lembro-me de ouvir falar de terroir, da humidade, da vindima, de uvas e castas e, como nessa manhã acordámos geladas, pensei que seria uma boa ideia réchauffer l’esprit num cenário vinhateiro. Depois de comermos uma omelette aux champignons em casa, fomos até à Bacalhôa, em Vila Nogueira de Azeitão, a sul de Lisboa, conhecida pelas tortas e o queijo e pelas duas grandes empresas de vinhos, a José Maria da Fonseca e a Bacalhôa, a nossa opção não sei bem porquê, talvez porque a promessa da visita através do site fosse mais atrativa.
Como se imagina, no caminho até Azeitão conversou-se acerca do atual proprietário (o comendador José Berardo) e verificámos que nenhuma de nós sabia muito sobre a Bacalhôa, salvo o nome deste ou daquele vinho. Ingenuamente, achávamos que íamos visitar umas caves (como repetiu várias vezes a minha amiga que é de Ponte de Lima), mas estávamos enganadas. O que haveríamos de descobrir jamais seria alcançável pelo melhor argumentista de série no seu dia mais inspirado.
Depois de três ou quatro reminiscências sobre o comendador que não devo reproduzir para não comprometer ninguém, parámos o carro num agradável parque para visitantes devidamente sinalizado, onde somos surpreendidas por um buldogue azul cobalto do tamanho de um elefante, numa pista óbvia para o que se vai passar que nem eu nem as minhas amigas percebemos. Como não sonhávamos que estávamos a duas horas e meia do primeiro gole. Quando fomos pagar a visita (no nosso caso, 12 euros por pessoa, incluindo adega, palácio, quinta e prova — entretanto atualizados para 14 euros) compreendemos que a Bacalhôa que viéramos visitar afinal são pelo menos duas a alguma distância uma da outra: a zona da empresa de vinhos, onde começa a visita (e termina, como descobrimos horas depois) e o palácio, para onde vamos no nosso carro, em fila indiana pela estradas nacionais com as outras pessoas que marcaram à mesma hora. Um pouco discutível que a empresa não tenha uns pequenos shuttle, mas não sejamos picuinhas.
As expectativas são importantes e as promessas também. Quantas pessoas vão a estas visitas porque querem beber vinho a meio da tarde sem temer julgamentos? Muito poucas, é impossível estar numa empresa de vinhos sem ser acometida por um désir de fazer um brinde. Saber que a prova estava longe desapontou-nos um pouco, mas lá chegámos à quinta/palácio onde nos recebeu uma mascarilha gigante feita de espelhos, obra de Joana Vasconcelos que se calhar tinha fugido do buldogue azul.
Ao fim de quase duas horas, e sem tocar numa gota de vinho, teremos visto os jardins e vinhas de uma quinta palácio datada do século XV, ter-nos-ão dito que não provemos as uvas porque têm um químico, teremos passado por uma espécie de tanque/lago abastecido pela água da serra e ter-nos-íamos perdido num labirinto de sebes, antes de entrar em partes do edifício onde há várias cronologias espalhadas pelas paredes, inúmeras salas contíguas cheias de coisas antigas, assim tipo turismo de habitação que exibe as peças da família, incluindo memórias da família dos proprietários americanos pré-Comendador e múltiplos azulejos de todo o tipo. Durante todo este tempo ( muito tempo…), um guia motivado discorre sobre a história de Portugal em geral e a história do local onde estamos em particular, embora só aflore a produção de vinhos en passant, porque fala sobretudo de azulejos. Ao fim de pouco tempo, estávamos exaustas e cheias de sede e já pouco ouvimos da família que ajudou Azeitão e acolheu refugiados da Segunda Guerra. Mon Dieu, o guia bem se esforçou, mas a mistura é tanta que só queremos que termine aquela visita de estudo, em que vimos vinha de relance e nunca nos mostram como se faz vinho.
Allons-y. De volta à sede (no nosso carro) mal sabíamos que nos esperava outra visita de estudo, que começou pelas tabuletas junto de oliveiras transplantadas do Alqueva de troncos muito grossos, onde podemos ler que algumas foram plantadas por romanos e nasceram antes de Cristo ter andado na terra.
A Bacalhôa Vinhos de Portugal fica num edifício futurista, uma base espacial em forma de hexágono construída no meio de uma série de jardins com espécies de todo o lado, obras de arte, ruínas, muitos azulejos, loja, vinhas, um lago e diferentes zonas ligadas à produção do vinho. Caves não vimos nenhumas, malheureusement.
Passada a aula de botânica, entramos no centro de exposições do hexágono onde nos deparamos de imediato com aquilo que o nossos olhos e o nosso cérebro dizem ser uma reprodução gigantesca e fiel do portão do campo de concentração de Auschwitz. Apesar da insistência do nosso cérebro, só acreditamos porque o guia confirma. A explicação para aquilo ali? Não é convincente. Aparentemente um serralheiro fez a reprodução e ofereceu-a a alguém que decidiu ser boa ideia colocá-la como obra maior da abertura de uma tripla exposição, que mistura azulejos, arte africana e três artistas plásticos que sobreviveram aos nazis. No total, e depois de termos visto uma exposição de arte angolana ao som de Hakuna Matata (!), uns minutos numa adega escura cheia de pipas reconciliou-nos com a promessa de château. Quem manda na Bacalhôa deve ser uma daquelas pessoas que quando prepara um pot au feu usa todos os temperos que tem à mão, achando que quanto mais sabores meter na panela melhor ficará. Ou então, é de supor que o proprietário não tenha onde guardar tantas coisas que comprou ao longo de décadas e as espalhou por ali, como se um milionário excêntrico que gosta de exibir o que tem. Às tantas, qui sait?
Na sala de provas, onde finalmente aterrámos, os guias nem nos deixam respirar e passam a vendedores de vinho, repetindo o preço das garrafas no fim de cada discrição. Os mais melancólicos pensarão se levam umas quantas enquanto espreitam o jardim Japonês no exterior, onde há obras do escultor Nizuma e a árvore Kaki, bisneta da única árvore sobrevivente à bomba nuclear de Nagasaki.
Pela nossa parte, bebemos os vinhos de um trago, sem escutar nem mais uma palavra que fosse dos guias, concluindo que o passeio pela Bacalhôa é uma visita très long com poucas vinhas em que se prova vinho assim assim. Não vimos nem cacho de uvas nem um daqueles enólogos giros que usa camisa Ralph Lauren e gilet amoroso. Queríamos cultura, tivemos cultura. Numa timeline na quinta tínhamos lido que, em 2008, se realizou ali uma reunião secreta dos responsáveis dos bancos europeus, para discutir a salvação do Euro. A prova provada que passámos a tarde num episódio de Succession, onde tínhamos ido parar durante uma trip de cogumelos mágicos.
Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável. A visita à Bacalhôa foi realizada ainda em 2022, pelo que as exposições patentes poderão ter mudado.