Recentemente, e durante três anos, fiz psicoterapia. Suspeito que um dos meus piores defeitos como paciente era o de sentir a estúpida obrigação de não dar seca à minha terapeuta, de a entreter, até mesmo de a fazer rir. Fui chamada à atenção algumas vezes, que não estaria ali para ser uma palhacita performativa, mas a ideia de que eu a poderia aborrecer com a minha vida banal e os erros repetitivos incomodava-me. Daí ter-me sentido pessoalmente atingida (vá, deixem-me ser exagerada) pela premissa de “Shrinking”, a comédia que agora se estreia na Apple TV+ (esta sexta-feira, dia 27): um terapeuta em processo de luto farta-se do status quo da conduta da sua profissão e começa a dizer aos pacientes exatamente aquilo que acha, acusando-os de serem chatos e insistentes nos disparates e obrigando-os a mudar de vida. Enquanto, claro, também muda a sua.
Com dez episódios ao todo (estreiam-se agora os dois primeiros e depois a cadência será semanal), “Shrinking” é a segunda série sobre psicólogos a chegar ao streaming da Apple em poucos meses, depois da mini-série biográfica e sombria “The Shrink Next Door”. O tom aqui é radicalmente diferente, até porque esta comédia junta uma equipa de autores de peso: a Bill Lawrence e Brett Goldstein, dois dos criadores do sucesso “Ted Lasso”, junta-se o ator e também guionista Jason Segel (que escreveu, por exemplo, o último filme dos Marretas). E se a saga sobre o treinador de futebol com um coração de ouro abriu a porta definitiva a um tipo de sitcom com mais amor dentro do humor, “Shrinking” tenta dar um pontapé nessa porta. Infelizmente, danificando algumas ombreiras e dobradiças, porque exagera por vezes na sua própria abordagem.
[o trailer de “Shrinking”:]
Jimmy Laird (Jason Segel, “How I Met Your Mother”) é então um terapeuta em pleno luto pela morte da mulher, há um ano, num acidente de carro. Tentando funcionar entre a depressão e a adição, é um pai negligente da sua filha adolescente, Alice (Lukita Maxwell, “Genera+ion”), que recorre mais à sua vizinha metediça Liz (Christa Miller, “Scrubs”) do que ao próprio pai. Jimmy divide o seu consultório com mais dois psicólogos, o ancião Dr. Paul Rhodes (Harrison Ford, não sei se já ouviram falar) e a faladora Dr. Gaby Evans (Jessica Williams, “Daily Show”). Logo no início do primeiro episódio, Jimmy dá o seu grito do Ipiranga, colocando a deontologia da profissão para trás das costas e dizendo diretamente a uma paciente que deve deixar o namorado abusivo. De seguida, opta por ajudar um jovem ex-militar com stress pós-traumático, Sean (Luke Tennie, “Players”), de uma maneira mais pessoal, que rapidamente descamba.
O conceito-base é bastante interessante (se bem que teria o risco de dizer ao mundo “veem como a terapia é uma fantochada?”), mas acaba por ser depressa abandonado. A série foca-se mais e mais nos devaneios pessoais Jimmy e menos na sua relação com os pacientes, com um resultado narrativo menos coeso do que se gostaria. Há um excelente naipe de personagens, mas existe também a sensação de que não são bem movimentadas no tabuleiro do xadrez narrativo.
O ponto alto de “Shrinking” é mesmo o privilégio de vermos uma série com Harrison Ford, aqui em pico de forma na comédia, mesmo que pareça sempre um pouco estar a fazer dele próprio. Dá a sensação de que vai a qualquer momento largar do chicote de Indiana Jones ou responder um seco “I Know” a uma Princesa Leya apaixonada. Mas vê-lo a cantar empenhado “Every Morning”, o sucesso açucarado dos Sugar Ray, fez o meu dia, a minha semana, o meu mês. O seu seco Dr. Paul, um bruto com coração de ouro, está para esta série como Roy Kent está para “Ted Lasso”. E nem é por acaso: o co-criador Brett Goldstein é também o ator que dá corpo a esse futebolista na premiada série.
É exatamente no querer ser parecido com “Ted Lasso” a toda a força que “Shrinking” mete a pata na poça: no esforço demasiado notório para ser uma “série quentinha”. E se em “Ted Lasso” isso parece ocorrer de um modo mais orgânico e surpreendente, “Shrinking” é por vezes vítima do seu próprio formato, parecendo, em certos momentos, uma paródia dela própria. É pena, porque o potencial está todo lá; terá faltado, talvez, um certo distanciamento crítico. O não querer à força toda que o relâmpago caia duas vezes no mesmo lugar.
Outro exemplo vagamente irritante de como a saga de Jimmy se esforça demasiado é na banda sonora. É tão indie-millenial-melancólico a tentar ser rebuscado para mostrar cultura geral que parece um sketch: Christian Lee Hutson, Life In Film, Eddie Veder, Sam Fender e depois ali a Rosa Linn com um sucesso made in Tik Tok para parecer mais moderno do que é.
Os dois episódios de estreia são, talvez, os mais bem conseguidos da temporada. Daí para a frente (foram facultados à imprensa os primeiros nove, ficando apenas a faltar o décimo episódio final), o propósito original da série empapa-se mais em reflexões sobre a vidinha. Nada que torne a série numa perda de tempo — continua a haver bons momentos e boas piadas —, mas antes numa certa perda de uma boa oportunidade. Resta saber se terá uma segunda temporada para apurar o que não se fez bem aqui. Eu gostava, nem que seja para poder continuar a ver o Harrison Ford a ser patusco. Pode ser que para a próxima cante Limp Bizkit.