Em 1842, Robert Browning publicou um livro de poesia que incluía um poema intitulado “My Last Duchess”. O poema descreve o retrato da “antiga duquesa”, que é apresentado pelo interlocutor a um emissário enviado a sua casa para negociar o seu próximo casamento. Enquanto descreve a pintura e a mulher nele retratada, o duque dá a entender que foi ele a causa da sua morte precoce.

Há muito que “My Last Duchess” tem sido associado a Alfonso II d’Este, quinto duque de Ferrara, uma cidade entre Bolonha e Veneza. O nome da mulher do retrato nunca é referido, mas esta tem sido identificada como Lucrezia di Cosimo de’ Medici, primeira mulher do duque. O poema de Browning é conhecido, mas pouco se sabe sobre Lucrezia, que morreu jovem, menos de dois anos após o casamento. Circulou o rumor de que a duquesa tinha sido envenenada pelo marido, uma versão aceite por alguns autores, embora a explicação mais provável seja a de que morreu de tuberculose.

A sua misteriosa vida e morte inspiraram o último romance de Maggie O’Farrell, autora de Hamnet, que, na nota final, admite: “Alfonso II d’Este, duque de Ferrara, é geralmente considerado como tendo inspirado o poema ‘A Minha Última Duquesa”, de Robert Browning; Lucrezia di Cosimo de’ Medici d’Este, duquesa de Ferrara, inspirou este romance”. O’Farrell explica que tentou usar no romance “o pouco que se sabe” sobre “a curta vida” de Lucrezia, tendo sido obrigada a fazer “algumas alterações, em nome da ficção”. Alguns nomes foram alterados para evitar confusão e certas datas e lugares mudados para tornar a narrativa mais fluida. Como é natural, a grande maioria dos eventos descritos nunca aconteceram. O final inesperado é uma feliz reviravolta numa história sobretudo trágica, sobre uma mulher com um espírito indomável, que foi obrigada a submeter-se às vontades da sua família e marido para perpetuar os nomes de que era detentora.

Se Lucrezia era realmente assim, não é possível saber. Mas tal como em Hamnet, cuja narrativa gira em torno da quase anónima mulher do dramaturgo William Shakespeare, O’Farrell foi capaz de pegar numa personagem histórica terciária e transformá-la numa figura memorável.

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Título: “O Retrato de Casamento”
Autor: Maggie O’Farrell
Tradutor: Inês Dias
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 376

As semelhanças com Hamnet não se limitam ao facto de os dois romances terem duas mulheres singulares e de espírito independente como protagonistas. Tanto Agnes como Lucrezia são figuras incompreendidas, solitárias, que vivem isoladas dos restantes membros da família e da população. No caso da duquesa d’Este, isso deve-se, por um lado, ao facto de não ter qualquer parecença com os seus irmãos e pais (a figura que lhe é mais querida é a velha ama, Sofia), e, por outro, por ser filha de Cosimo I de’ Medici, grande duque da Toscana. Lucrezia cresceu no interior de um palácio, sem contacto com o mundo exterior. O Retrato de Casamento é, por causa disso, um romance de interior e familiar. Uma primeira parte descreve as interações familiares dos Medici em Florença e a outra as intrigas e problemas da família de Alfonso II e da corte em Ferrara, a que a duquesa não é capaz de se adaptar.

O romance começa em 1561, menos de dois anos após o casamento com Alfonso II d’Este. Lucrezia está numa antiga fortaleza, perto de Bondeno, e sabe que o seu fim está muito próximo. O marido quer matá-la. No capítulo seguinte, Lucrezia deixou Ferrara e enconta-se novamente em Florença. É ainda uma criança e desconhece os episódios que marcarão os seus últimos anos de vida. O’Farrell apresenta os membros da família e da casa Medici (os pais de Lucrezia, os seus irmãos, as amas…) e os seus traços característicos, tão diferentes dos de Lucrezia, uma espécie de animal selvagem, para sempre indomável, com um talento natural para a pintura, o seu passatempo favorito. Ao longo de O Retrato de Casamento, O’Farrell vai intercalando os capítulos sobre o passado da duquesa com aqueles que falam sobre a sua passagem por Bondeno, revelando, aos poucos, aquilo que torna Lucrezia única.

A sua existência quase despercebida muda radicalmente quando a irmã mais velha, Maria, noiva de Alfonso, morre subitamente antes do casamento. O incidente causa grande comoção na casa Medici. Pouco depois, de forma inesperada, Alfonso monstra interesse em casar com a única filha ainda solteira de Cosimo, Lucrezia, e em manter o acordo de unir as duas casas. Lucrezia apela ao pai que não a obrigue a casar, mas o duque é irreversível na sua decisão — a sua filha mais nova casará com Alfonso. Embora não saiba ainda o que o futuro lhe reserva, a filha de Cosimo pressente que algo de terrível vai acontecer: no dia em que sabe que terá de casar com Alfonso, Lucrezia apercebe-se, de repente, que o casamento será a sua morte. “Talvez agora, talvez mais tarde, mas em breve.”

A boda de Lucrezia e Alfonso é celebrada em Florença, com grande pompa e circunstância, e os duques de Ferrara abandonam a cidade nessa mesma noite. Lucrezia nunca mais volta a Florença. Os seus últimos anos de vida são passados na região de Ferrara, um sítio que mal conhece, rodeada pelas estranhas personagens de uma corte que vive sob grande tensão — a mãe de Alfonso, uma protestante francesa que nunca abandonar a sua primeira religião, exila-se juntamente com a filha mais velha após a morte do marido. Enquanto herdeiro e novo duque, Alfonso tem de provar o seu valor e subjugar a região através da força bruta.

Lucrezia vai lentamente percebendo o que escondem os sorrisos da corte de Ferrara: violência e medo. O marido, o dedicado e ternurento Alfonso, tem, afinal, duas faces, como Juno — a do esposo atento e a do governador cruel que não admite ser contrariado. A incerteza da sua posição faz com que fique obcecado com a ideia de produzir um herdeiro que assegure a continuação da dinastia. Mas há um problema: Alfonso II d’Este nunca foi pai. Nenhuma das suas amantes ficou grávida e, um ano após o casamento com Lucrezia, filha de “La Fecundíssima”, continua sem engravidar. A duquesa sente o peso que lhe pesa sobre os pequenos ombros, mas é só depois de uma das irmãs de Alfonso, Elisabetta, a alertar para o que se passa que compreende verdadeiramente em causa: “Vais ser culpada. Por isso, tem cuidado, Lucrezia. Muito, muito cuidado”.

Mas o aviso chegou tarde. Conduzida à fortaleza de Bondeno pelo marido, a duquesa d’Este sabe que o seu fim chegou. É envenenada por Alfonso durante o primeiro jantar em Bondeno, mas Lucrezia, tal como a tigresa que o seu pai adquiriu quando era criança, não está pronta para aceitar pacificamente o destino que foi escolhido pelos homens da sua vida. A duquesa anseia pela liberdade a que nunca teve direito, em casa do seu pai e depois na casa do seu marido. Tentando manter a clareza de espírito, luta até ao fim, mesmo sabendo que Alfonso está decidido a matá-la: quando o seu retrato de casamento lhe é revelado, o duque deixa escapar o que lhe vai na mente: eis o retrato da minha primeira duquesa.

Com este novo romance, Maggie O’Farrell assume-se como uma das mais interessantes romancistas da atualidade. A sensibilidade com que trata o tema do feminino e da condição da mulher ao dar vida a personagens absorvidas pela vida dos seus pais e maridos e, por isso, esquecidas para a História, não tem comparação. A forma minuciosa como escolhe e coloca as palavras assemelha-se ao ato de pintar, e por faz todo o sentido que O Retrato de Casamento fale sobre pintura e que tenha o retrato como tema principal. Não o retrato-pintado, mas os retratos que somos. Cada pessoa tem em si diferentes caras, e Lucrezia conclui isso mesmo acerca de si própria, ao olhar para o retrato de casamento encomendada por Alfonso: a pintura é um outro “eu”; um “eu” que, quando ela morrer e for enterrada no seu túmulo, continuará a viver.