A comissão independente que ao longo do último ano investigou os abusos de menores na Igreja Católica em Portugal recomendou aos bispos portugueses uma revisão da imposição do segredo de confissão para os crimes sexuais contra crianças — uma alteração à lei interna da Igreja que o episcopado português já tinha dito antes que nunca admitiria.
“Rever a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica”, lê-se no segmento das recomendações à Igreja Católica que surge no final do relatório de 486 páginas, divulgado esta segunda-feira.
Porém, é mais do que certo que esta recomendação não terá consequências práticas nas leis da Igreja. Em abril do ano passado, numa altura em que a comissão independente já estava em funções, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, avisou que a Igreja nunca estaria disponível para rever o segredo de confissão.
Numa conferência de imprensa em Fátima após uma Assembleia Plenária dos bispos portugueses, D. José Ornelas foi questionado pelos jornalistas sobre a possibilidade de revisão do segredo de confissão quando estivessem em causa abusos de menores.
Para o líder dos bispos portugueses, o assunto não é sequer discutível. “Nunca esteve nem nunca estará em questão“, disse D. José Ornelas, equiparando o segredo de confissão com o sigilo profissional de profissões como os médicos ou os psiquiatras. “Seria uma injustiça muito grande porque abriria toda a confiança que é necessário que exista dentro da confissão, como em muitas outras profissões, como médico ou psiquiatra.”
Confrontado com o facto de a lei prever exceções para o sigilo profissional nas várias profissões enumeradas (nomeadamente, quando exigido por um tribunal), mas não para os sacerdotes, D. José Ornelas garantiu que o segredo de confissão “não prevê nem nunca vai prever” exceções.
Atualmente, a lei portuguesa protege o segredo de confissão como absoluto — sendo o único dos segredos profissionais que não pode ser quebrado, nem por ordem judicial.
Já o Código de Direito Canónico determina que não pode haver qualquer exceção para o segredo de confissão e que o clérigo que o violar incorre imediatamente na pena de excomunhão.
No relatório da comissão independente, lê-se que 14,3% dos abusos registados foram cometidos no confessionário. Vários relatórios realizados noutros países do mundo apontam para cenários semelhantes e têm mostrado, ao longo dos últimos anos, que o confessionário — um ambiente protegido pelo segredo de confissão — é um dos lugares mais propícios à ocorrência de abusos de menores, já que a obrigatoriedade do sigilo tem o potencial de ser usada como forma de ameaça contra as vítimas.
Os padres estão igualmente proibidos de revelar qualquer crime de que tenham conhecimento durante a confissão — mesmo os de abusos de menores.
Na Austrália, depois da publicação do relatório sobre os abusos em 2017, a Igreja Católica foi confrontada com a mesma recomendação — e rejeitou-a liminarmente. Quando os estados australianos aprovaram leis que revertiam a proteção total do segredo de confissão, o arcebispo de Melbourne, Denis Hart, chegou mesmo a dizer que preferia ir para a prisão a violar o segredo de confissão.
No relatório, a comissão independente recomenda também à Igreja Católica que promova uma outra cultura, capaz de um “reconhecimento inequívoco” dos abusos, que lance uma publicação anual sobre o lugar da criança na Igreja, que combata o clericalismo, que cumpra efetivamente a “tolerância zero” e a tomada de uma série de medidas concretas para proteger as crianças nos ambientes eclesiásticos.
A comissão pretende igualmente que a Igreja Católica deixe de associar os abusos de menores a uma quebra do sexto mandamento — para que os abusos sejam vistos como crimes contra as crianças e não contra a Igreja — e que repense “todo o tema da sexualidade, enquanto matéria a tratar aos vários níveis no interior da Igreja e ligando-a a princípios e estratégias próprias da doutrina social da Igreja“.
A equipa pede ainda que a Igreja materialize o pedido de perdão às vítimas em “algo que simbolicamente perdure no tempo enquanto espaço de evocação das pessoas vítimas” e mude as lógicas de formação dentro da Igreja Católica.
A comissão independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht apresentou esta segunda-feira o relatório final que resultou de um ano de investigação. Nesse relatório, surge a indicação de que a comissão recebeu 512 testemunhos válidos de vítimas de abusos de menores — a partir dos quais estimou um número provável mínimo de 4.815 vítimas nas últimas sete décadas.