Cada vez que Brendan Fraser se levanta em “A Baleia”, existe uma sensação de grandeza, misturada com terror, medo e força. Os ângulos de câmara de Darren Aronofsky ajudam a potenciar a ideia desta coisa que se ergue, quase como se fosse uma baleia a surgir à superfície a relevar e a explorar toda a sua dimensão. Uma imagem que contrasta com o Brendar Fraser que sobe ao palco para receber prémios: já o tinha feito nos SAG Awards e repetiu o mesmo nos Óscares. Afinal, é humano. E, como humano, teve uma série de maus dias que os últimos meses devem ter ajudado a esquecer.

Aquela imagem de “A Baleia” marca. Poderia ser pela dimensão de Charlie, pela forma mórbida como aceitou a comida para o resto da vida ou até pela fina linha do risco, pensa-se: o que acontece se ele cair? A imagem prende pela imponência, ao levantar-se Charlie parece muito mais alto – grande – do que se imagina e o movimento é como se fosse uma onda, o mar, e dali emergisse um ser, uma outra pessoa. Outro ator poderia fazer isto? O gesto, o movimento, claro. Brendan Fraser carrega o movimento com uns olhos tristes.

Já se sabia dos seus olhos tristes. Não é de agora. Uma característica que o acompanha desde o início da carreira, por mais comédias em que entrasse, fosse “George – O Rei da Selva” (1997) ou “Dudley Assume o Comando” (1999) ou “Sedutora Endiabrada” (quem se lembra destes títulos?), de 2000, ou quando foi um dos rostos de uma tendência de Hollywood que não deixará grande memória, os mistos de fantasia-acção-história como a trilogia de “A Múmia”, os seus olhos tristes estavam por lá. Que não se leia isto como uma prenúncio, antes como característica de um ator que parecia estar à espera do momento. E, como muitos, teve de esperar bastante tempo.

“A Baleia”: entre o insólito grotesco e a sensibilidade há uma narrativa forçada

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Não tanto pelo Óscar de Melhor Ator, mas por um papel como o de Charlie em “A Baleia”. Darren Aronofsky sabe ir buscar e deformar atores para os filmes, tinha-o feito com Mickey Rourke em “O Lutador” (2008) e agora retomou a conversa com Fraser. Quando o filme foi apresentado em Veneza em Setembro, muito se falou dos olhos tristes de Brendan Fraser. Finalmente tinham lugar numa história que lhes fazia justiça. Sim, Fraser está irreconhecível em “A Baleia”, interpreta uma personagem morbidamente obesa que passa a maior parte do tempo sentado.

Um professor que só dá aulas online, que sabe estar a dias da morte e que se tenta reconectar com a filha, que não vê desde que se divorciou da mãe. Um trama elaborado e complexo fez Charlie aceitar que não queria viver mais e encontrou uma forma de se matar com lentidão, comendo, comendo, até chegar ao ponto onde está. Nas entrelinhas do filme existem várias razões que justificam esta escolha, o processo vagaroso para que este desejo se concretize, e nenhuma delas parece inusitada pela forma como Brendan Fraser veste a personagem. Quando se levanta, sobretudo na primeira vez, está ali à frente algo maior do que nós. Do que o nosso entendimento.

É o melhor de “A Baleia”? Sim. Aronofsky permitiu a Brendan Fraser sair do buraco onde estava, após mais de uma década a descer. Filmes como “Viagem Ao Centro da Terra” (2008, no mesmo ano entrou no último filme de “A Múmia”) e “Coração de Tinta” (do mesmo ano) fecharam o ciclo de ator de filmes de aventura que procuravam redescobrir um Indiana Jones no início do século. Tentou-se, forçou-se, não aconteceu. No ano seguinte, divorcia-se de Afton Smith, com quem estava casado há mais de dez anos. A partir daqui a carreira vida levam um rombo.

Foi protagonista em mais alguns filmes (“Medidas Extraordinárias”, com, estranha coincidência, com Harrison Ford, e “Perseguidos”), mas aos poucos e poucos começa a desaparecer da linha da frente. Entra na televisão, tem uma boa participação em “The Affair” e um papel ativo, mas pouco presente, na esquecida “Condor” (uma daquelas séries que se não viu, devia ver). Em 2018, vem a público dizer que Philip Berk – na altura presidente da Hollywood Foreign Press Association, responsável pelos Globos de Ouro – o tinha assediado em 2003.

Diz-se que nesta altura entrou numa lista negra de Hollywood. Um daqueles boatos. O que se sabe é que em 2022/2023, relançado por “A Baleia” olhou-se de novo para um ator que foi saindo do sistema por vários motivos, pessoais, físicos (os esforços em alguns filmes causaram-lhe algumas lesões) e emocionais. Aronofsky não lhe ofereceu um comeback, mas um argumento para aqueles olhos tristes terem uma história que lhes sirva, de um homem que abandonou a vida e cuja condição obriga o espectador a estar com ele em casa durante quase duas horas.

Quando se levanta, já não é o homem com cara de rapazinho com olhos tristes, mas um ser grotescamente imperial. Sem o grotesco, mas imperial, humano, assim subiu Brendan Fraser ao palco para receber o Óscar. Há uns meses não acharíamos possível. Há uns meses nem nos lembrávamos dele. Se é irreconhecível em “A Baleia”, hoje é o ator que nos habituámos a ver: divertido, sem medo do ridículo, e pronto para qualquer coisa.