Oeiras, perto de Lisboa, não é Cannes, nem sequer é Mandelieu, nem sequer é a Costa da Caparica, mas descobri há pouco que tem uma marina sympathique, com uma zona onde se pode passear, simplesmente estar ou comer qualquer coisa. Num destes dias fomos até lá e acabámos na cervejaria bar Catalazete, que abriu no ano passado. Descobre-se bem à entrada da zona comercial, porque é mesmo à saída de um parque de estacionamento. O nome é difícil de memorizar, é de um Forte do século XVIII que existe na região, foi lá que decidimos petiscar, porque queríamos algum sossego e nos pareceu longe de possíveis multidões que se pudessem juntar porque o sol brilhava e nada atrai mais multidões que o sol a brilhar.
No caminho viéramos a falar da vontade de ir ver a retrospetiva do pintor Alex Katz no Guggenheim de Nova Iorque, o que nos fez sentir cidadãos do mundo mas logo a seguir nos deprimiu porque a arte por cá é escassa e pouco interessante. Decidimos vencer a ambivalência, tomamos o partido de Portugal e investimos em sensações mais terrenas e próximas de les choses simples de la vie. Afinal de contas, que outra capital da Europa tem o Parlamento tão perto do oceano ou o aeroporto a um quarto de hora do centro histórico?
Sentámo-nos e começámos por beber uma pequena bière pression que chega inesperadamente acompanhada por esse milagroso petite mise en bouche que é o tremoço. Adoro tremoços, com as sardinhas na brasa é singularidade portuguesa de que mais saudades tenho quando estou fora. De bom grado, passámos de Alex Katz para o pires, concluindo que estas pequenas maravilhas amarelas são cada vez mais raras sem que se perceba exatamente o motivo. Tanto conceito, tanto jardim vertical, tanta ardósia, tanta latinha do Ikea com os talheres lá dentro, tanta mania de copiar as coisas dos outros países, quando temos o fantástico tremoço… Quelle déception.
Com o tremoço chegou a fome. Começámos por pedir dois croquetes com mostarda (2,6 euros) enquanto observamos as pessoas que passavam com cães e nos perguntávamos porque é que em Portugal é raro investir-se em aquecimentos para as mesas no exterior. Os croquetes estavam bons, de carne muito bem confecionada, nenhuma relação com aquela má fama dos croquetes feitos com restos, mas não foram suficientes para nos acalmar a fome. Voltámos então ao menu, que inclui o que vai sendo costume nestas cervejarias contemporâneas portuguesas (lascas de batatas, Pimentos Padrón, essas coisas) e decidimos fazer uma petiscada surf’n’ turf, começando numas gambas al Ajillo (13,5) e terminando num Pica Pau da vazia com um ovo cozido a baixa temperatura (9,5). Antes de tudo, porém, venha de lá esse choco frito (9,5) com maionese de alho, porque ninguém resiste a fritos, muito menos quem está com fome.
Portugal vive uma adolescência de modernidade, o nariz já cresceu mas continua com cara de menino e modos bruscos e insolentes, o que talvez explique que em portos, marinas e sítios em cima do mar continue a haver muitos restaurantes de praia barulhentos, com empregados carrancudos de camisa branca com nódoas, toalha de papel e marisco vivo em aquários de água esverdeada. Felizmente, que lugares como a cervejaria Catalazete estão a investir numa ideia mais simpática e acolhedora, em que os empregados são simpáticos e o serviço mais eficiente. O problema é que os petiscos dos restaurantes de tolha de papel costumam ser mais deliciosos que os destes locais modernos e revigorados. Há um patois próprio nas cervejarias antigas que faz ter saudades das toalhas de papel em que desenhava enquanto esperava que os mais velhos terminassem a conversa. Suponho que esteja a ficar velha e tenha de aceitar as planches de madeira com respetivo choco frito reinventado, em vez da travessa da alumínio ou de cerâmica que vinha sempre acompanhada dos berros a pedir mais cervejas ao colega do balcão. Não desgostámos propriamente do choco, mas o polme não era o que esperávamos e sabor também não. Felizmente, o universo redimiu-se com as magníficas gambas grandes e carnudas, num molho maravilhoso e criativo, que ia muito além do simples azeite quente com alho queimado do costume.
O melhor veio no final, um pica-pau com um ovo estrelado (9,5) que se mistura no molho e forma uma emulsão muito saborosa, o único dos pratos que me faria voltar à Marina de Oeiras se esta não fosse o local mais sans cachet da história das marinas e portos de recreio (dica: não vale a pena enterrar uma cauda gigante de cachalote no cimento, não estamos na atração da Pequena Sereia na Disney).
Aos domingos, a Catalazete serve cozido à portuguesa (a 18,5 euros), e também há noites de fado de vez em quando, o que demonstra que apesar de todo o conceito de marina, ali estamos mesmo muito longe do Guggenheim de Nova Iorque. A pensar na dissonância cognitiva, lembrando-me de uma pizzaria que serve favas ao domingos e a supor que a Catalazete queira construir uma comunidade que tanto gosta de ameijoa à bolhão pato (16 euros ) como de orelha de porco, ainda bebi uma biere avec de la grenadine, um Tango (2 euros), que encontrei dans le menu.
Em resumo, a comida é boa e bem preparada, empregados simpáticos e eficientes, a decoração e o ambiente geral impecáveis, mas não deixei de ficar com a sensação que nada distingue a cervejaria Catalazete de qualquer cervejaria moderna que abra amanhã num local onde os seus proprietários tenham acesso à Internet, um smartphone e conta na instagram. O mosaico cerâmico no chão, as ardósias escritas a giz, as cadeiras que temos sempre a sensação de serem compradas às carradas no IKEA, a latinha com os talheres, só não reparei se havia jardim vertical de plantas de plástico, parecia que estávamos num restaurante de uma personagem de uma telenovela chamado Pipo, Nico ou Quico.
É bom de ver que eu provavelmente teria feito uma decoração exatamente assim, mas deve haver um motivo para as cervejarias de toalha de papel se aguentarem tanto tempo e estas abrirem e fecharem…
Freud dizia que a nossa personalidade, aquilo que achamos que somos, se baseia em traços de memórias, em especial as da infância que por sinal são as que menos nos lembramos. Não me lembro se quando era nova havia quartos de limão por todo o lado nos pratos de peixe e marisco, talvez um ou dois, mas creio que não havia esta quantidade anormal que vemos hoje, como nos aconteceu na Catalazete. Quantos quartos de limão terão sido desperdiçados na nossa refeição, perguntei-me enquanto pagava a conta. Haverá um dia um movimento para os poupar? Como se ouve na chanson de Sylvie Vartan, je ne plaisante pas.
Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.