Na Alameda das Fontainhas ergue-se desde 1 de março de 2020 uma estátua de homenagem às mulheres que, por quase um século, carregaram da beira-rio até ao topo duma longa e invulgarmente íngreme ladeira, talvez a maior do Porto (220m, 21 ou 22º de declive), e dali até padarias, casas de pasto, carvoarias, fábricas de bolachas ou cerâmica e residências privadas, pesados fardos de carqueja, um arbusto infestante de flor amarela que serviu de acendalha em fornos, lareiras e fogões a lenha até ao tardio advento do forno elétrico, pelos anos 1950-60. Da margem esquerda do Douro, o inglês Frederik William Flower registou particularmente bem, num calótipo fotográfico de 1860 (pp. 92, 97), a Calçada da Corticeira, tangente com a fábrica de azulejos dita do Carvalinho instalada na antiga Quinta da Fraga, a capela do Senhor do Jesus do Carvalinho erguida no século XVII (hoje uma completa ruína, v. fotos p. 48) e ainda seis fontes, já todas desaparecidas, incluída a das Lágrimas, desenhada por Nasoni em 1745 — além de um sortido de «ilhas» e casebres de migrantes muito pobres, gente de Penafiel a Vila Real (p. 27), e até mesmo alguns tascos (p. 83). Em 1881, uma fábrica de cortumes laborava na Corticeira, em franco contraste com as belas quintas de lazer que haviam notabilizado a zona pelos inícios do século XIX.

Descalças, com capuz de sarapilheira protegendo ombros e cabeça e uma corda pela testa, unindo duas centenas de pequenos molhos de carqueja e suportando 40 a 50 kg de carga, as carquejeiras faziam ali o que por lei já estava proibido a bestas de tiro. Não eram — de facto — as únicas mulheres que, em tempos que felizmente já lá vão, faziam tarefas pesadíssimas nos ancoradouros (no Bicalho, por exemplo, descarregavam bacalhau de canastra à cabeça sobre longas pranchas de madeira) ou que nas pedreiras da Areosa eram britadeiras ou cascalheiras, mas na Corticeira a subida de Sísifo e a “lentidão e persistência de insectos” (Rentes de Carvalho, cit. p. 59) tinham tudo para que a “vida negra” (sic) das carquejeiras impressionasse bastante. Severo Portela classificaria tal ofício como “ignomínia para todo e qualquer decoro cívico” (cit. p. 58) — depois de, em 1905, numa demonstração de máxima potência mecânica e não menor arrogância social, «perante numerosa assistência», um double-phaeton Ford de 20 cavalos ter galgado a calçada em apenas 35 segundos (Germano Silva, p. 176), um exibicionismo que Aurélio da Paz dos Reis fotografou para a Ilustração Portuguesa.


Título: “As Carquejeiras do Porto: um projecto, um sentido”
Autora: Arminda Santos
Editor: Afrontamento
Páginas: 217

De 1928 a 1951 a Liga Portuguesa de Prolifaxia Social levou a cabo uma longa e todavia inconsequente campanha pelo fim de ofício tão violento: «É um triste e vergonhoso espectáculo, tanto do ponto de vista humano, como sob o aspeto citadino, ou mesmo nacional, ver estas desgraçadas, esquálidas e em farrapos, atravessar em fila, semiocultas nos próprios fardos que carregam, as ruas animadas duma cidade que se preza de cristã e civilizada — a Capital do Norte, a segunda cidade do país» (cit. p. 185; v. folha-volante p. 88). “O Porto tem destas coisas, destas contradições e incongruências”, começa por reconhecer no seu prefácio Helder Pacheco, afamado historiador-cronista da cidade invicta que também evoca “um passado [sic] de pobreza, doença, alojamento precário, promiscuidade, alcoolismo, violência doméstica, analfabetismo, desemprego” (p. 9). No seu As Mulheres do Meu País (1948-50, cit. p. 172), Maria Lamas refere-se muito sumariamente às carquejeiras, que aliás não fotografou.

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Em 1951, ainda havia registo de 20 carquejeiras ativas. Em 1992, numa primeira homenagem, por decisão municipal a Calçada da Corticeira passa a chamar-se das Carquejeiras, mas foi em 2014 que, por iniciativa da autora deste livro — e muito provavelmente após o óbito de uma das duas carquejeiras ainda sobreviventes —, se constitui uma pequena associação direcionada a homenageá-las simbolicamente com um monumento. A maqueta seria apresentada à junta de freguesia do Bonfim em Novembro desse mesmo ano (p. 139). Em 2017, uma exposição temática de pintura e desenho na Fundação Manuel António da Mota, no Bom Sucesso, veio pôr em evidência a iniciativa e a indispensável coleta de donativos para a fundição em bronze da estátua. Dois documentários televisivos, um deles com a participação do Rancho Folclórico do Porto, a centenária revista O Tripeiro e duas descidas da Calçada guiadas por portuenses ilustres e sábios também divulgariam a iniciativa, todavia «a tarefa da Associação revelar-se-ia, — informa Pacheco à p. 11, — não digo tão árdua mas, pelo menos, tão canseirosa como a saga das mulheres que pretendia homenagear”, e acabaria por ser o mecenato da fundação já referida e um “milagroso” (p. 165) Orçamento Colaborativo da junta de freguesia do Bonfim a proporcionarem os meios necessários, aliás modestos.

Palmira de Sousa e Valentina Rosa Machado, carquejeiras muito longevas, falecidas em 2014 e 2019, prestaram depoimentos fundamentais para memória futura sobre aquele ofício e o seu raio de acção cidade adentro, a que uma «antologia» dá achegas relevantes — como a bela página assinada por Maria de Lourdes dos Anjos (“Duas de letra”, p. 187) —, porém, salta à vista a ausência, nesse feixe literário, dos escritos de Armando Gonçalves, autor em 1939 do volume de reportagens Humildes que Trabalham — dedicado à memória de Raul Brandão… —, ou mesmo daquilo que viajantes estrangeiros em Portugal possam ter escrito sobre isso. Do mesmo modo se lamenta nada ter sido visto ou dito acerca dos dois relevos sobre as carquejeiras feitos por Henrique Moreira (s/d.; v. p. 125), e que se julgariam esboços para algum memorial que não passou das boas intenções, que não seja incluído neste livro a obra plástica que o talentoso António Carneiro fez sobre o tema e foi mostrada na exposição de 2017, ou, até, que se tenha identificado o desenho a carvão de Manuel Monterroso referido por Severo Portela em 1952 (v. p. 171).

O empenho apaixonado e devotado não substitui — ou dispensa — o rigor da pesquisa bibliográfica ou artística que compete a campanhas deste tipo, da mesma maneira que o saber-fazer editorial, o indispensável zelo na revisão dos textos e na referência fidedigna de fontes e bibliografia não deviam poder faltar, como faltaram, a um livro publicado sob a prestigiada chancela da Afrontamento, mas é este o livro que certamente ficará, muito apesar disso, como registo perene duma campanha generosa e justa — e, neste sentido, verdadeiramente exemplar — acerca duma faceta da história da cidade do Porto e da sua gente, o “drama oculto” das mulheres da Calçada das Carquejeiras. Fica também o magnífico trabalho de José Lamas, escultor discreto mas competente e que não desilude, o que não é dizer pouco no mais que horripilante panorama atual dessa bela arte pública…