O documento de 12 páginas da deliberação unânime do acionista público a demitir a presidente da comissão executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, e o presidente do conselho de administração, Manuel Beja, gerou tensão na comissão parlamentar de inquérito. Jaime Andrez, presidente da Parpública, disse ter na sua mão essa deliberação, mas numa versão não original que só tinha a sua assinatura.

A deliberação, a que o Observador teve acesso e que teve uma parte divulgada esta quarta-feira pelo Jornal Económico, tem a assinatura de Jaime Andrez e de Ana Santos Martins, pela Parpública, e de Carlos Santos Pinto, pela DGTF.

Na deliberação contestam-se os argumentos da ex-CEO e do ex-chairman, dizendo que no caso Alexandra Reis deixaram à margem o acionista Ministério das Finanças, desvalorizando a concordância que o Ministério das Infraestruturas deu ao acordo com a gestora que saiu com uma indemnização de quase meio milhão de euros. O acionista Estado assume que a iniciativa partiu da CEO, acusando ambos os gestores de falhas na “integridade, lealdade, cooperação, confiança e transparência com o acionista”.

Além disso, diz-se na deliberação unânime, a violação dos deveres dos gestores verificou-se por ação e omissão. “Por ação, por via da outorga” do acordo com Alexandra Reis, e “por omissão, por força da não comunicação, em nenhum momento, da negociação e outorga do acordo ao membro do Governo responsável pela área das finanças ou aos seus representantes no exercício da função acionista”. Essa decisão cabe à assembleia-geral. Ainda se diz que, “desde que publicamente conhecidos o alcance e os efeitos do Acordo subscrito pelo PCA e pela CEO, que se fizeram repercutir sobre a TAP, SGPS, S.A. e outras sociedades do Grupo TAP consequências notoriamente negativas sobre a reputação e boa gestão destas empresas públicas, de central relevância social e indiscutível importância económica no contexto nacional”.

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As três pessoas — duas pela Parpública e uma da DGTF — deliberam, assim, “na qualidade de acionistas da sociedade TAP — Transportes Aéreos Portugueses, SGPS, S.A”, “por escrito” que:

  • “Ao abrigo do disposto no artigo 25.º/1, b) do EGP, o Dr. Manuel Beja é demitido do cargo de Presidente do Conselho de Administração da TAP, SGPS, S.A., com fundamento nas violações graves da lei e dos estatutos que lhe são individualmente imputáveis, nos termos acima descritos e que constam também do Relatório n.º 24/2023 da IGF”;
  • “Ao abrigo do disposto no artigo 25.º/1, b) do EGP, a Eng.ª Christine Ourmières-Widener é demitida do cargo de Administradora e CEO da TAP, SGPS, S.A., com fundamento nas violações graves da lei e dos estatutos que lhe são individualmente imputáveis, nos termos acima descritos e que constam também do Relatório n.º 24/2023 da IGF”;
  • E, “em consequência, a Eng.ª Christine Ourmières-Widener deve ser demitida, com os mesmos fundamentos, do cargo de Presidente do Conselho de Administração da Portugália — Companhia Portuguesa de Transportes Aéreos, S.A. e da TAPGER — Sociedade de Gestão e Serviços, S.A., devendo para o efeito o Conselho de Administração da TAP, SGPS, S.A., no exercício da função acionista nessas sociedades, ao abrigo do disposto no artigo 37.º/3 do RJSPE, executar esta deliberação através da aprovação de deliberações sociais unânimes por escrito no dia 14 de abril de 2023”.

Logo aí, na deliberação que tem a data de 12 de abril, se diz que a 14 de abril os gestores cessam funções. Tal como já tinha sido referido pelo Ministério das Finanças, a destituição remete para o artigo 25.º do Estatuto do Gestor Público (EGP) na alínea que refere para motivo possível de destituição “a violação grave, por ação ou por omissão, da lei ou dos estatutos da empresa”.

Na deliberação, a que o Observador teve acesso, é referido explicitamente que a TAP se encontra submetida ao regime jurídico do setor empresarial do Estado e os administradores ao Estatuto do Gestor Público, com as exceções feitas em 2020 que dizem respeito essencialmente a limites de remunerações. E está sujeita ao controlo da Inspeção Geral das Finanças (IGF).

Em relação à discrição do procedimento, nessa mesma deliberação, explica-se que “por determinação do ministro das Finanças do passado dia 29.12.2022, foi solicitada à IGF a avaliação do processo de cessação de funções societárias e laborais da Eng.ª Alexandra Reis nas empresas do Grupo TAP”. O que deu origem ao relatório de auditoria que ficou conhecido a 6 de março, e que motivou a conferência de imprensa de Fernando Medina e João Galamba na qual anunciaram o despedimento dos dois gestores.

Com base no relatório da IGF, conclui-se, nesta deliberação, que a “cessação de funções de Alexandra Reis dos cargos de administradora de empresas do Grupo TAP, o acordo de cessação de relações contratuais outorgado no dia 4.02.2022 pelo presidente do conselho de administração, Dr. Manuel Beja, e pela CEO, Eng.ª Christine Ourmières-Widener, é nulo, no essencial porque o EGP não prevê a figura da ‘renúncia por acordo’, sendo que a renúncia constante do EGP não confere direito a qualquer compensação financeira, pelo que o valor a esse título auferido por aquela ex-administradora encontra-se desprovido de fundamento legal”.

Ainda se realça a conclusão de que a saída de Alexandra Reis foi promovida por iniciativa da ex-CEO, “que acompanhou todo o processo que culminou na outorga, por si e pelo PCA, daquele Acordo, sem observância do regime legal aplicável e sem sequer ter garantido a intervenção ou, no mínimo, a informação ao titular da função acionista, exercida pelo membro do Governo responsável pela área das finanças“.

Além disso, lê-se ainda que “o ato praticado pelo PCA e pela CEO, visando operar a saída da Eng.ª Alexandra Reis, carecia de deliberação da Assembleia Geral das diversas sociedades onde a referida Administradora exercia funções, o que não aconteceu”.

Daí que houve “inobservância dos normativos legais aplicáveis às empresas públicas e às sociedades comerciais, bem como das regras estatutárias e regulamentares das empresas do Grupo TAP por parte dos administradores envolvidos, a qual deve ser avaliada e ponderada no âmbito do exercício da função acionista.”

Com base nestas conclusões, ainda se indica que o ministro das Finanças determinou à Direção-Geral do Tesouro e Finanças (‘DGTF’), por despacho de 7.03.2023, “preparar e promover o procedimento de demissão” dos gestores, para depois, a 13 de março, se aprovar o projeto de deliberação de demissão. Houve o momento de audiência, com a apresentação de pronúncia pelo PCA (presidente do conselho de administração) e uma resposta apresentada pela CEO, acompanhada de 29 documentos e com requerimento para a audição de seis testemunhas.

Segundo se escreve na deliberação, “das seis testemunhas agora requeridas ouvir pela CEO, a maioria (4) já foi pessoalmente ouvida ou prestou declarações por escrito perante a IGF, no âmbito do processo de auditoria que culminou com a aprovação do Relatório, e as restantes (2) são ou foram agentes da TAP e do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, cujos mais altos responsáveis, à data dos factos relevantes, já foram ouvidos ou prestaram declarações no âmbito daquele processo de auditoria, ao que acresce que na resposta não é concretamente associada, em relação a nenhuma dessas 6 testemunhas, qualquer matéria factual precisa cujo apuramento se possa prefigurar relevante — donde, se considera desnecessário fazer promover a respetiva audição.”

Manuel Beja declarou na sua pronúncia que houve violação de audiência prévia e não ter feito qualquer ato de violação grave porque o ministro das Infraestruturas deu concordância ao acordo com Alexandra Reis, além de ter sido assessorado por sociedades de advogados de “renome”. Diz mesmo que há uma “conduta abusiva por parte dos acionistas da TAP”, porque “a invocação da violação das normas legais e estatutárias aplicáveis por ausência de comunicação do acordo ao MF [Ministério das Finanças] e de deliberação da assembleia-geral revela-se violadora do princípio da boa-fé, uma vez que foi incutida no interessado a confiança de que o correto procedimento passaria pela intervenção do MIH [Ministério das Infraestruturas e Habitação]”.

A CEO, tal como já tinha dito na comissão de inquérito, também ataca a audiência prévia, atirando também responsabilidades para a tutela, ao dizer que “não tomou nenhuma decisão material relevante” e que “os desenvolvimentos do processo negocial, a cargo dos Advogados que representavam a TAP e a Eng.ª Alexandra Reis, foram sempre transmitidos ao MIH e submetidos à sua apreciação e aprovação, sendo todas as decisões finais por este tomadas”.

Alexandra Reis não foi, acrescenta, destituída, mas saiu por acordo. Christine Ourmières-Widener fala ainda da sua ação como diligente e criteriosa. E ainda alega, nessa defesa citada na deliberação unânime, que o Governo a manteve mais um mês no cargo, o que contraria o pressuposto de conduta grave e intolerável.

Na deliberação unânime, o acionista Estado contesta que não tenha havido possibilidade de defesa. E escreve que a iniciativa da CEO de suscitar junto do MIH a substituição de Alexandra Reis se deveu a divergências profissionais irreconciliáveis na comissão executiva, conduzindo o processo, mas com recurso a assessoria jurídica externa. Deu a conhecer o processo a Manuel Beja. Mas, acrescenta a deliberação, “esse processo não foi comunicado, em nenhum momento e por nenhuma via, ao membro do Governo responsável pela área das finanças”. Só depois do acordo, Manuel Beja informou os restantes membros da administração. Foi pago a Alexandra Reis 450 mil euros.

O acionista único diz não aceitar o argumento de Christine Ourmières-Widener de que não tomou a iniciativa nem que tinha tomado decisão material relevante.

Com isto, o acionista público diz ter-se apurado “juridicamente” que o acordo de renúncia de Alexandra Reis foi um “ato juridicamente nulo”. O EGP não prevê a figura de renúncia por acordo nem “consente que à cessação de funções por renúncia, nos termos do artigo 27.º, se associe o pagamento de qualquer compensação”. E se fosse um ato de demissão por mera conveniência, essa decisão cabe apenas à assembleia-geral, ou seja, ao acionista.

A deliberação considera ainda que até os valores da indemnização e os benefícios “carecem de fundamento legal”.

Para o acionista, o processo de saída de Alexandra Reis implicou “cumulativamente” violação do EGP e do regime jurídico setor público empresarial, mas também dos estatutos da TAP (que determina a competência de destituir administradores à assembleia-geral) e o Código das Sociedades Comerciais pelos “deveres de cuidado e de lealdade impostos ao exercício de funções de administração societária”, em especial, “na parte em que deles resultam obrigações de informação aos acionistas e a outros titulares de órgãos sociais.”

Essa violação verificou-se “por ação, por via da outorga daquele Acordo; e por omissão, por força da não comunicação, em nenhum momento, da negociação e outorga do Acordo ao membro do Governo responsável pela área das finanças ou aos seus representantes no exercício da função acionista”.

“A função acionista nas empresas públicas do setor empresarial do Estado é exercida exclusivamente pelo membro do Governo responsável pela área das finanças, sem prejuízo da devida articulação com o membro do Governo responsável pelo respetivo setor de atividade (artigos 37.º/2 e 39.º/1 do RJSPE)” e “é no âmbito do exercício da função acionista que se integra, designadamente, o poder de destituir os titulares de órgãos sociais (artigo 38.º/1, c) do RJSPE)”, lê-se ainda na deliberação.

E ainda se determina que “a violação das sobreditas normas legais e estatutárias é individualmente imputável: Ao PCA, por ter subscrito o Acordo e por em momento algum ter solicitado a convocação de uma Assembleia Geral para esse efeito ou sequer o ter reportado ao Ministério das Finanças; e à CEO, por por sua iniciativa ter iniciado e conduzido o processo que culminou na outorga do Acordo, o ter subscrito, e igualmente por em momento algum ter solicitado a convocação de uma Assembleia Geral para este efeito ou sequer o ter reportado ao Ministério das Finanças”.

A continuidade em funções dois gest0res é explicada, na deliberação, pela “necessidade de cumprir os procedimentos necessários para, nos termos legalmente devidos, proceder à respetiva demissão, não comportando tal circunstância qualquer desmerecimento da gravidade das violações apuradas”.

Veja aqui a deliberação.

É esta deliberação que Fernando Medina diz ser o ato jurídico da destituição, que “está blindado juridicamente”.