Um ano e meio depois do anúncio de que a Igreja Católica em Portugal iria finalmente investigar a realidade dos abusos sexuais de menores no contexto eclesiástico ao longo das décadas, rompendo com a prática instalada de desvalorizar o problema e de o atribuir apenas a outros países, a quase totalidade dos bispos católicos portugueses reuniram-se esta quinta-feira no Santuário de Fátima para uma celebração centrada no pedido de perdão às vítimas dos abusos. Na celebração, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa assumiu que, “em muitas ocasiões”, a Igreja não foi “capaz” de agir de forma a “evitar estes abusos e para lidar com a gravidade das ofensas que foram feitas”.
A Igreja Católica em Portugal declarou esta quinta-feira como dia nacional de oração pelas vítimas de abusos e convidou todos os fiéis do país a juntarem-se à celebração que decorreu em Fátima através da repetição, em todas as igrejas portuguesas, de uma oração universal pelas vítimas.
A partir de Fátima, foi o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas — o mesmo que há ano e meio fez avançar a investigação independente aos abusos na Igreja —, quem deu a cara pelo pedido de perdão, em duas intervenções com palavras duras, em que assumiu que durante muito tempo a Igreja não esteve à altura das responsabilidades de proteger as crianças e os mais vulneráveis.
No arranque da celebração, ladeado pelo vice-presidente da CEP, D. Virgílio Antunes, e pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, o bispo de Leiria-Fátima sublinhou que a Igreja portuguesa vive esta quinta-feira em “sentido de penitência humilde, de solidariedade e proximidade cristã com aquelas e aqueles que sofreram e sofrem, vítimas de comportamentos completamente iníquos, cruéis e manipuladores, por vezes disfarçados de atenção, afeto e até de motivação religiosa“.
“Como Igreja que somos assumimos a dor, a perturbação e a revolta dessas pessoas, tanto das que tiveram a coragem dolorosa de reagir e denunciar, como daquelas que se calam, ainda na incapacidade de falar dessa realidade que lhes barrou o caminho de uma vida mais feliz”, destacou D. José Ornelas, acrescentando: “Assumimos que, em muitas ocasiões, não fomos capazes de tomar consciência e de velar como devíamos, para evitar estes abusos e para lidar com a gravidade das ofensas que foram feitas.”
Para o bispo de Leiria-Fátima, que lidera a CEP desde 2020 (e foi esta semana reeleito para um segundo mandato), os abusos sexuais de menores e pessoas vulneráveis “são exatamente o inverso” do que a Igreja Católica é e celebra. “Por isso, imploramos o perdão de Deus que pediu aos seus discípulos que fossem misericordiosos e cuidadores, particularmente para com os mais pequenos e frágeis”, frisou o bispo.
Na mensagem inicial, D. José Ornelas reiterou que era chegado o momento de a Igreja apresentar “a cada um e a cada uma daqueles e daquelas que sofreram estes abusos em ambiente eclesial, um profundo, sincero e humilde pedido de perdão, em nome da Igreja na qual eles confiaram e onde sofreram tão injusta e perturbadora violência”.
“Pedimos igualmente a força, a coerência e a determinação de tudo fazer para que as pessoas que sofreram tão injustamente possam ter condições de superar os dramas que lhes foram infligidos, recuperar a estabilidade e a esperança na vida“, disse D. José Ornelas.
A “enormidade destruidora” dos abusos
Durante a homilia, o presidente da CEP voltou a refletir sobre a “dolorosa realidade” vivida pelas vítimas de abusos na Igreja e deixou uma nota central: a Igreja tem de se colocar onde Jesus Cristo estaria, ou seja, ao lado dos mais frágeis, dos mais vulneráveis e das vítimas. “O Evangelho que proclamámos descreve-nos o olhar atento de Jesus que se dirige, antes de mais, aos ‘pequeninos’ como expressão do carinho de Deus para com eles“, disse D. José Ornelas. “É prioritariamente a estes que se dirige o olhar atento e misericordioso de Jesus.”
Para o bispo de Leiria-Fátima, este olhar de Jesus que dá prioridade aos mais pequenos “faz entender a enormidade destruidora da violência e do abuso das crianças e dos mais débeis, exatamente nos lugares onde era suposto estar patente a atitude contrária que é fonte de vida, de liberdade e confiança”.
“Faz também entender a absoluta necessidade de se colocar, antes de mais e acima de tudo, ao lado de quem sofre esta devastadora realidade. Não se pode passar ao lado nem encobrir, por comodidade ou conivência. Não se pode pactuar com situações e atitudes que comprometam, deste modo, a vida de pessoas inocentes”, disse ainda. “A ‘tolerância zero’, de que fala o Papa Francisco, exprime esse compromisso fundamental para com a vida e a justiça, em favor dos que foram iniquamente delas privados.”
Prioridade são as vítimas, não o bom nome da Igreja
D. José Ornelas apontou também a necessidade de inverter as prioridades da Igreja: as vítimas devem estar antes da defesa do bom nome da Igreja. “Jesus não veio como grande senhor, ao modo dos grandes desta terra”, sublinhou, destacando a importância de um trabalho discreto.
“Ele convida-nos a segui-Lo no caminho discreto e de serviço com que o bem tem de ser feito: ‘Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’. É deste modo que Ele mostra o coração materno/paterno de Deus, o coração que propõe como atitude a imitar por aqueles/as que o seguem. Aprenderemos tudo isto se não agirmos como se estivéssemos a erigir um monumento à nossa grandeza ou para fazer boa figura“, disse o bispo.
“É essa atitude de humildade (que significa a verdade) que permite colocar os que sofrem como prioridade do nosso agir e não a nós próprios, do nosso grupo ou mesmo do bom nome da Igreja. Esta é a atitude que nos move”, acrescentou ainda.
Um caminho que não pode voltar atrás
Na fase final da homilia, D. José Ornelas destacou o trabalho que a Igreja tem vindo a fazer ao longo do último ano, a partir da dor das vítimas. “É uma dor que nos acorda, nos motiva e nos abre humildemente a ir ao vosso encontro, a escutar o que é incómodo, a reconhecer a dor e a procurar partilhá-la e, na medida do possível, aliviá-la e colaborar, por todos os meios, na libertação daqueles que foram tão dramaticamente afetados“, disse.
“Gostaríamos que, assim como experimentastes essas injustiças no seio da Igreja, possais fazer a experiência de irmãos e irmãs que querem ajudar a sarar feridas e a abrir caminhos de futuro. Foi com esse intento que empreendemos este caminho que entra agora numa nova fase. Estamos a criar condições para que esse encontro seguro e transformador seja possível. É convosco, e na medida do vosso desejo, que queremos empreender um caminho de reparação e de superação das dificuldades”, destacou ainda o bispo.
D. José Ornelas acrescentou que a “Igreja não pode voltar atrás neste caminho; é mesmo preciso estar ao lado dos mais pequenos, dos mais esquecidos, em hospital de campanha, como fala o Papa Francisco”. “Há caminho para além da dor, da justa revolta e da injustiça“, sublinhou.
Obra de arte de padre suspeito de abusos em pano de fundo
A celebração desta quinta-feira foi integrada no calendário diário de missas do Santuário de Fátima e, por isso, decorreu na Basílica da Santíssima Trindade — onde acontecem as missas das 11h diariamente. A coincidência acabou por fazer com que toda a celebração acontecesse com a grande obra do padre jesuíta Marko Rupnik, que está sob suspeitas de abusos, como pano de fundo.
Rupnik, padre e artista esloveno, é o autor do enorme painel dourado que ornamenta o presbitério da Basílica da Santíssima Trindade e que se tornou num dos ícones do Santuário de Fátima — mas, ao longo dos últimos anos, tem enfrentado múltiplas acusações de crimes sexuais cometidos por Rupnik contra várias mulheres, incluindo uma dezena de freiras.
Em 2021, a Companhia de Jesus deu início a uma investigação de fundo a Rupnik. No final do ano passado, os jesuítas anunciaram que Rupnik se encontra impedido de exercer o ministério sacerdotal. Mais recentemente, soube-se também que, além das acusações de abusos contra mulheres, poderá estar em causa também um crime contra uma pessoa com menos de 18 anos de idade.
Rupnik é autor de inúmeras obras de arte espalhadas por várias igrejas e templos católicos por todo o mundo. O Santuário de Lourdes, em França, por exemplo, está a ponderar retirar os painéis da autoria do ateliê de Rupnik da fachada da basílica.