Fala “em abstrato” de cenários que podem vir a ter lugar e rejeita fazer “anúncios” ou revelar intenções. Mas Paulo de Sá e Cunha, um dos advogados de Christine Ourmières-Widener, levanta a ponta do véu sobre o que poderá vir a acontecer no litígio entre a gestora francesa e o Estado português. Em entrevista ao podcast Cheque In, do Observador que analisa semanalmente a crise da TAP, Paulo de Sá e Cunha adianta que, em casos como o da CEO demitida da TAP, podem ocorrer não um mas vários processos em tribunal. Podendo envolver pedido de indemnização.
Sem adiantar se Christine Ourmières-Widener já decidiu avançar para a impugnação, por dever de sigilo profissional, o advogado refere que “podemos estar a falar de um processo em tribunal administrativo, inclusive em vários processos em vários tribunais, porque estas questões não são lineares e dependem da natureza dos danos que venham a ser invocados”.
Por um lado, refere, poderão ser tiradas as “consequências resultantes de uma demissão ilegal relativamente ao tempo do contrato que ainda faltaria cumprir”, e essas consequências são apreciadas num tribunal. Mas há outras consequências possíveis. Por exemplo, “o que em termos de danos reputacionais resulta, para uma pessoa com a vida profissional da senhora engenheira Christine Ourmières-Widener, da invocação de justa causa, se se admitir que, afinal, essa justa causa não existe. Isso pode gerar danos reputacionais que poderão ter de ser apreciados noutro tribunal”, explica.
E podem ser pedidas as respetivas reparações. “Estamos a falar sempre de situações que geram responsabilidade civil. Haverá, se for o caso, pedido de indemnização”. Mas, faz questão de salvaguardar, “estamos a falar de hipóteses que se colocam em abstrato neste tipo de situações. Não quero que interpretem estas declarações como tendo instruções da minha cliente para isto ou para aquilo ou como um anúncio de fazer isto ou aquilo”.
Vários processos significam vários prazos, acrescenta o advogado. “Porque há a possibilidade de instaurar diferentes ações com diferentes fundamentos em diferentes tribunais. Há matérias que têm prazos mais curtos e outras mais dilatados. Uma ação por responsabilidade civil por facto ilícito, e se pensarmos em danos reputacionais podemos pensar neste enquadramento, pode ser instaurada até três anos após a prática dos factos. O prazo depende do tipo de ação e do tipo de enquadramento legal”, refere. A SIC tinha avançado que a CEO tinha até 13 de julho para avançar com uma ação contra o Estado.
Paulo de Sá e Cunha afirma que “a contestação em sede de audiência prévia foi oportunamente apresentada” mas a impugnação ainda não. “Essa impugnação corresponde a um direito que a minha constituinte tem e que poderá exercer e que, se calhar, com alguma probabilidade, virá a exercer”, adianta.
A deliberação unânime que sustenta a demissão de ex-CEO e do ex- foi assinada a 12 de abril, e tem como base a auditoria da Inspeção Geral de Finanças (IGF). Nela, o Governo acusa os gestores demitidos de violação dos respetivos deveres por ação e omissão. “Por ação, por via da outorga” do acordo com Alexandra Reis, e “por omissão, por força da não comunicação, em nenhum momento, da negociação e outorga do acordo ao membro do Governo responsável pela área das finanças ou aos seus representantes no exercício da função acionista”.
Para Paulo de Sá e Cunha, este argumento pode ser rebatível. “Tomando como base a informação que foi entretanto tornada pública, o que se tem alegado, e me parece mais ou menos óbvio, é que o processo relacionado com a saída de Alexandra Reis da TAP foi diretamente acompanhado pelo secretário de Estado das Infraestruturas [Hugo Mendes] e pelo ministro [Pedro Nuno Santos] ao tempo. Se essa articulação não foi feita entre membros do Governo, tenho dúvidas que alguém possa ser censurado, em particular que a minha constituinte possa ser censurada, por ter cometido aí uma infração grave de um dever”, adianta.
“Temos de partir do princípio que um assunto que é tratado sob as instruções diretas de um membro do Governo é do conhecimento do Governo. Quando se pensa em justa causa, há um elemento de censurabilidade que tem de existir. Parece-me mais ou menos óbvio que havendo intervenção direta de membros do Governo, o Governo como um todo está ao corrente”, não havendo por isso motivo para censurabilidade da gestão.
Já sobre o facto de o Governo só ter pedido apoio jurídico após as demissões, o advogado da gestora francesa diz que mais do que isso, ficou surpreendido com o facto de, “ao que tudo indica”, ter havido “uma decisão que foi antecipadamente tomada e o procedimento legal decorrente do estatuto do gestor público só ter sido iniciado depois de tomada a decisão”.
Para Paulo de Sá e Cunha, “isto é uma clara subversão dos princípios que deviam ter sido observados”, porque “entre outras coisas, o estatuto do gestor público impõe a realização de uma audiência prévia dos visados”, que é anterior a uma decisão definitiva. “O que parece ter acontecido é que neste caso houve uma decisão que foi tomada politicamente, anunciada em público e anunciada imediatamente com a indicação do sucessor dos dois membros do conselho de administração que estavam a ser visados”.
E, “ao que tudo indica, o que foi anunciado na conferência de imprensa conjunta dos ministros das Finanças e Infraestruturas foi uma decisão definitiva e depois, só dias depois, é que há um projeto de deliberação dos acionistas, que é comunicada aos visados dando-lhes o prazo para exercerem a faculdade de se pronunciarem em audiência prévia”. Para o advogado, “este procedimento jurídico é um simulacro que se destina a dar uma aparência de legalidade a uma decisão que já está tomada”, que “do ponto de vista do cumprimento da lei é censurável e tem consequências”.
Sobre a referida “justa causa” para as demissões, o advogado esclarece que esta é uma expressão que se usa “para facilidade de compreensão”, mas no caso de gestores públicos não se aplica. Aplica-se, sim, um critério equivalente que é o da fundamentação das demissões. “As demissões ao abrigo do estatuto do gestor público são de duas categorias. Ou é uma demissão por mera conveniência ou é fundamentada num comportamento reprovável que foi praticado pelo administrador demitido”. O que é “muito próximo do conceito de justa causa”. Neste caso, “não há despedimento porque o despedimento se aplica a contratos de trabalho e os contratos que vinculam os administradores das sociedades à sociedade não são contratos de trabalho. Por isso o que há é uma demissão”, explicita.
Paulo de Sá e Cunha desconhece outros casos com contornos semelhantes a este, e que por isso é difícil antever um desfecho. “Com estas características, que eu saiba, não há nenhum caso, em que a opinião da IGF tenha sido determinante para o afastamento de gestores públicos, e se houve impugnação judicial e com que resultados, porque essas situações não são muito frequentes”.